O Sinal dos Quatro
Título: O Sinal dos Quatro
Título: The Sign of the Four
Autor: Sir Arthur Conan Doyle
Ano de Edição: 1890
Páginas: 133
Sinopse:
Mary Mortsan, cujo pai desapareceu há mais de uma década, recebe uma mensagem de um desconhecido marcando um encontro prometendo esclarecimentos sobre esse desaparecimento. Mary procura o célebre detetive Sherlock Holmes pedindo-lhe para a acompanhar a esse encontro. Dr. Watson, deslumbrado com a beleza de Mary, acompanha-os. O encontro revela-se misterioso e acaba por ser mais um desafio para a mente brilhante de Sherlock Holmes.
Mary Mortsan, cujo pai desapareceu há mais de uma década, recebe uma mensagem de um desconhecido marcando um encontro prometendo esclarecimentos sobre esse desaparecimento. Mary procura o célebre detetive Sherlock Holmes pedindo-lhe para a acompanhar a esse encontro. Dr. Watson, deslumbrado com a beleza de Mary, acompanha-os. O encontro revela-se misterioso e acaba por ser mais um desafio para a mente brilhante de Sherlock Holmes.
Curiosidades:
É a segunda história da saga do detetive Sherlock Holmes e seu companheiro Dr. Watson.
É a segunda história da saga do detetive Sherlock Holmes e seu companheiro Dr. Watson.
Capítulo I – A Ciência da Dedução
Sherlock Holmes tirou o frasco do canto da prateleira do fogão e a seringa hipodérmica do seu arrumado estojo de marroquim. Com os seus dedos longos, brancos, nervosos, ajustou a delicada agulha e arregaçou a manga esquerda da camisa. Durante alguns instantes fitou pensativamente o antebraço e o pulso, com tendões salientes e cheios de marcas e cicatrizes das inúmeras picadas. Por fim, espetou certeiramente a ponta aguçada, comprimiu o pequeno êmbolo e afundou-se nos estofos de veludo da cadeira de braços, soltando um longo suspiro de satisfação.
Três vezes por dia, desde há muitos meses, eu presenciara este acto, mas o hábito não levara o meu espírito a aceitá-lo. Pelo contrário, de dia para dia aquela cena irritava-me cada vez mais, e pesava-me a consciência ao pensar que me faltara a coragem para protestar. Uma e outra vez jurara a mim próprio que desabafaria acerca do assunto; mas aquele ar calmo e indiferente do meu companheiro fazia dele a última pessoa com quem se desejaria ser inconveniente. As suas enormes faculdades, o ar magistral e a experiência que já tivera das suas muitas e extraordinárias qualidades, tudo me fazia encarar com hesitação e reserva qualquer controvérsia.
Naquela tarde, contudo, não sei se por causa doBeaune que bebera ao almoço, se por estar mais exasperado devido à extrema premeditação da sua atitude, senti repentinamente que não me podia calar por mais tempo.
- Hoje o que é - perguntei -, morfina ou cocaína? Levantou os olhos languidamente do velho livro que abrira.
- É cocaína - respondeu -, uma solução a sete por cento. Quer experimentar?
- Claro que não - respondi bruscamente. - O meu organismo ainda não recuperou desde a campanha afegã.
Não me posso dar ao luxo de o submeter a um esforço suplementar.
Sorriu perante a minha veemência.
- Talvez tenha razão, Watson. Creio que a influência da cocaína é fisicamente prejudicial. Acho-a, no entanto, tão transcendentemente estimulante e esclarecedora para o espírito que os seus efeitos secundários deixam de ter grande importância.
- Mas repare! - disse eu seriamente. - Quantos inconvenientes! O seu cérebro, Gomo afirma, pode ficar desperto e excitado, mas trata-se de um processo patológico e mórbido que envolve uma elevada substituição de tecidos e pode, pelo menos, provocar uma permanente fraqueza. Sabe também como é negativa a reacção posterior. Na verdade, o jogo é demasiado arriscado para valer a pena. 'Por que há-de, para obter um mero prazer passageiro, arriscar-se a perder as preciosas faculdades com que foi dotado? Lembre-se que falo não apenas como amigo, mas também como médico, tendo em conta que, de algum modo, sou responsável pela sua saúde.
Não pareceu ofender-se. Pelo contrário, uniu as pontas dos dedos e assentou os cotovelos sobre os braços da cadeira, como se estivesse a preparar-se para uma agradável conversa.
- O meu espírito - disse - não suporta a estagnação.
Dêem-me problemas, dêem-me trabalho, dêem-me o mais abstruso criptograma, ou a análise mais intrincada, e sinto-me na atmosfera que me é própria. Posso então dispensar estimulantes artificiais. Mas abomino a monótona rotina da existência. Necessito imperiosamente de exaltação do espírito. Por isso escolhi esta minha profissão específica, ou melhor, criei-a, pois sou o único no mundo.
- O único detective não oficial? - perguntei, erguendo as sobrancelhas.
- O único detective consultivo não oficial - respondeu.
- Sou a última e mais alta instância a que se recorre para resolver um caso. Quando Gregson, ou Lestrade, ou Athelney Jones estão desorientados, o que é, diga-se de passagem, o seu estado normal, o assunto é-me apresentado. Examino os dados, na qualidade de perito, e pronuncio um parecer de especialista. Não exijo que seja reconhecido o meu mérito em tais casos. O meu nome não aparece nos jornais. O próprio trabalho, o prazer em encontrar um campo de aplicação para as minhas faculdades peculiares, é a maior recompensa. Já teve oportunidade de conhecer os meus métodos de trabalho por ocasião do caso de Jefferson Hope.
- Sim, é verdade - retorqui cordialmente. - Nada me impressionou tanto em toda a minha vida. Cheguei mesmo a narrar o caso numa pequena brochura, com o título um pouco fantástico de Um Estudo em Escarlate.
Abanou a cabeça tristemente.
- Dei-lhe uma vista de olhos - disse ele. - Confesso que não posso felicitá-lo por ter escrito essa obra. O trabalho do detective é, ou deve ser, uma ciência exacta e assim tem de ser tratado, friamente, sem emoção. Tentou emprestar-lhe alguns traços de romantismo, o que produz quase o mesmo efeito que introduzir uma história de amor na quinta proposição de Euclides,
- Mas o romance existia - objectei. - Não podia adulterar os factos.
- Há factos que deveriam ter sido suprimidos, ou, pelo menos, um justo sentido das proporções teria de ser mantido ao tratá-los. O único ponto digno de menção nesse caso era o curioso raciocínio analítico, partindo dos efeitos para as causas, através do qual o consegui resolver.
Desagradou-me esta crítica a um trabalho que fora especialmente concebido para lhe agradar. Confesso que também me irritava aquele egotismo que parecia exigir que cada linha do meu panfleto fosse dedicada aos seus próprios feitos.
Mais de uma vez, durante os anos em que vivi com ele em Baker Street, notei que havia alguma vaidade por detrás da atitude calma e didáctica do meu companheiro. Não fiz observação alguma, contudo, sentando-me para repousar a minha perna ferida. Levara um tiro de um arcabuz afegão, há algum tempo, e, embora conseguisse andar, sentia dores terríveis sempre que o tempo mudava.
- Recentemente a minha actividade passou a abranger também o Continente - disse Holmes, momentos depois, ao mesmo tempo que enchia o seu velho cachimbo. - Fui consultado na semana passada por François le Villard, que, como provavelmente sabe, se tornou ultimamente num dos melhores detectives franceses. Possui toda aquela faculdade celta da intuição rápida, mas é deficiente no vasto campo do conhecimento exacto, que é essencial para o total desenvolvimento da sua arte. O caso relacionava-se com um testamento e possuía alguns aspectos interessantes. Eu estava preparado para lhe indicar dois casos idênticos, o de Riga, em 1857, e o de St. Louis, em 1871, os quais lhe sugeriram a verdadeira solução. Aqui está a carta que recebi esta manhã agradecendo a minha colaboração.
Atirou-me uma folha amarrotada de papel de carta estrangeiro. Dei-lhe uma olhadela, notando uma profusão de pontos de exclamação e de magnifiques, coup-de-maitres etours-de-force, que testemunhavam a ardente admiração por parte do francês.
- Parece um aluno a falar para o professor - disse eu.
- Oh ele valoriza excessivamente a minha colaboração, - retorquiu desprendidamente Sherlock Holmes. - Ele próprio tem dons consideráveis. Possui duas das três qualidades necessárias ao detective ideal: tem capacidade de observação e de dedução.
Só carece de conhecimento, o que pode vir a adquirir com o tempo. Está agora a traduzir para francês as minhas pequenas obras.
- As suas obras?
- Oh, não sabia? - disse ele, rindo. - Sim, confesso-me culpado da autoria de várias monografias. Todas sobre temas técnicos. Aqui, por exemplo, está uma «Acerca da Distinção entre as Cinzas dos Vários Tabacos». Nela enumero cento e quarenta espécies de tabaco de charuto, de cigarro e de cachimbo, sendo a diferença entre as cinzas ilustrada através de gravuras coloridas. É uma questão que surge frequentemente em processos-crime e que, por vezes, tem uma importância decisiva. Se for possível afirmar, por exemplo, que certo crime foi cometido por um homem que fumava um lunkah indiano, obviamente que se restringe o campo da investigação. Para um olhar experiente, a cinza negra de um trichinopoly e a branca de um cigarro são tão diferentes como uma couve e uma batata.
- Possui um enorme talento para minúcias - observei.
- Considero-as importantes. Eis a minha monografia acerca de pegadas, com algumas observações sobre os usos do gesso de Paris como preservador de marcas. Aqui está também uma pequena mas curiosa obra acerca da influência de certas profissões sobre a forma da mão, com gravuras de mãos de pedreiros, marinheiros, corticeiros, compositores tipográficos, tecelões e polidores de diamantes. É um assunto de grande interesse prático para o detective científico... especialmente em caso de corpos não identificados ou na descoberta dos antecedentes de criminosos. Mas estou a aborrecê-lo com o meu passatempo.
- De maneira nenhuma - respondi convictamente. - Interessa-me imenso, especialmente desde que tive a oportunidade de observar a aplicação prática dos-seus métodos.
Mas acabou de falar de observação e dedução. Certamente que uma implica até certo ponto a outra...
- Nem sempre - respondeu, recostando-se confortavelmente na cadeira de braços e lançando grossos rolos de fumo azul pelo cachimbo. - Por exemplo, a observação mostra-me que foi esta manhã ao posto dos correios em Wigmore Street, mas a dedução permite-me concluir que enviou de lá um telegrama.
- Acertou! - disse eu. - Ambas as afirmações são correctas! Mas confesso que não percebo como conseguiu saber. Tratou-se de um impulso repentino da minha parte e não falei nisso a ninguém.
- É muito simples - observou, rindo perante a minha surpresa -, tão extraordinariamente simples que qualquer explicação é supérflua; no entanto, talvez sirva para definir os limites da observação e da dedução. Através da observação vejo que tem um pouco de terra avermelhada nos sapatos. Mesmo em frente dos correios de Wigmore Street levantaram o pavimento e fizeram um buraco, de tal modo que é quase impossível não pisar a terra ao entrar. A terra tem este peculiar tom avermelhado que não se encontra, tanto quanto sei, em mais lado nenhum na vizinhança. E é tudo quanto à observação. O resto e dedução.
- Como deduz, então, o facto de eu ter enviado um telegrama?
- Ora, claro que sabia que não tinha escrito uma carta, pois estive aqui consigo durante toda a manhã. Vejo também que tem sobre a sua secretária uma folha de selos e um grosso maço de postais. Que poderia ter ido fazer ao posto dos correios, então, se não fosse para enviar um telegrama? Eliminando todos os outros factores, o que resta será certamente a verdade.
- Neste caso, não há dúvida de que assim é - retorqui, depois de pensar um pouco. - Trata-se, contudo, de algo muito simples, como afirmou. Considerar-me-ia impertinente se submetesse as suas teorias a um teste mais severo?
- Pelo contrário - respondeu -, isso impedir-me-ia de tomar uma segunda dose de cocaína. Ser-me-á grato considerar qualquer problema que me queira apresentar.
- Costuma dizer que é difícil alguém usar diariamente um objecto sem lhe imprimir a marca da sua individualidade de tal modo que um observador experimentado a possa interpretar. Bem, tenho aqui um relógio que recentemente passou a pertencer-me. Não se importaria de me dar uma opinião acerca do carácter ou dos hábitos do anterior proprietário?
Estendi-lhe o relógio, ligeiramente divertido com a situação, pois o teste era, pensava eu, impossível de solucionar. Pretendia que fosse uma lição que corrigisse a atitude um pouco dogmática que ele por vezes assumia. Sopesou o relógio na mão, olhou fixamente para o mostrador, abriu a tampa de trás e examinou o mecanismo, primeiro a olho nu e depois com uma potente lente convexa. Era-me difícil não sorrir ao ver a sua cara desanimada, quando, por fim, fechou o relógio e o devolveu.
- Não me fornece muitas indicações - observou. - O relógio foi limpo recentemente, o que me priva dos factos mais sugestivos.
- É verdade - retorqui. - Foi limpo antes de me ser enviado.
Pensei para mim próprio que o meu companheiro dera uma desculpa muito pouco convincente para encobrir o seu falhanço. Que indicações poderia ele encontrar num relógio sujo?
- Embora insatisfatória, a minha pesquisa não foi completamente inútil - observou, fitando o tecto com um olhar baço e sonhador. - Espero que me corrija se errar, mas julgo que o relógio pertenceu ao seu irmão mais velho, que o herdou do seu pai.
- O que concluiu, sem dúvida, das iniciais H. W. gravadas na parte de trás.
- Exactamente. O W sugere o seu próprio nome. A data do relógio remonta aproximadamente a cinquenta anos atrás e as iniciais são tão antigas como o relógio; feito, portanto, para a geração anterior. A joalharia, normalmente, é legada ao irmão mais velho, que costuma ter o mesmo nome do pai. O seu pai, se não estou em erro, morreu há muitos anos. O relógio tem estado, por conseguinte, nas mãos do seu irmão mais velho.
- Até aí, tudo certo - disse eu. - Mais alguma coisa?
- Era uma pessoa desmazelada... muito desmazelada e descuidada. Deixaram-no numa boa situação, mas desprezou a sorte, viveu pobremente durante algum tempo com pequenos intervalos ocasionais de prosperidade e, finalmente, tendo começado a beber, morreu. É tudo quanto consegui saber.
Saltei da cadeira e coxeei impacientemente pela sala, sentindo-me consideravelmente amargurado.
- É indigno de si, Holmes - protestei. - Não o julgaria capaz de descer tão baixo. Andou a investigar a história do meu infeliz irmão e agora pretende ter deduzido esses conhecimentos através de um qualquer método extravagante. Não julgue que eu acredito que viu tudo isso neste velho relógio! Não é amável da sua parte e, para falar abertamente, cheira-me a charlatanice.
- Meu caro doutor – disse ele, gentilmente -, queira aceitar as minhas desculpas. Ao encarar o assunto de um modo abstracto esqueci-me de que se tratava de um assunto pessoal e doloroso para si. Asseguro-lhe, contudo, que nem sequer sabia que tinha um irmão até ao momento em que me mostrou o relógio.
- Então como conseguiu o prodígio de descobrir aqueles factos? Tudo o que disse esta absolutamente correcto em todos os detalhes.
- Ah, tive sorte. Apenas afirmei o que era mais provável. Não esperava de maneira nenhuma ser tão preciso.
- Mas não se tratava de uma mera suposição?
- Não, não: nunca faço suposições. É um hábito que destrói a faculdade lógica. O que lhe parece estranho só tal lhe parece porque não acompanhou a sequência do meu pensamento ou não observou os pequenos factos de que dependem as grandes inferências. Por exemplo, comecei por afirmar que o seu irmão era descuidado. Se observar a parte inferior da caixa do relógio pode notar que não só está amolgada em dois sítios, como também apresenta sulcos e marcas devidos ao hábito de guardar outros objectos duros, como moedas ou chaves, no mesmo bolso. Não é decerto uma grande façanha afirmar, acerca de uma pessoa que trata tão despreocupadamente um relógio de cinquenta guinéus, que é descuidada. Nem se trata de uma inferência muito forçada concluir que alguém que herda um artigo tão valioso tenha ficado numa boa situação sob outros aspectos.
Acenei afirmativamente, mostrando que seguia o raciocínio.
- É habitual que os prestamistas, em Inglaterra, ao receberem um relógio, gravem os números da cautela com um alfinete sobre a parte de dentro da caixa. É mais prático que uma etiqueta, pois não há o risco de perder o número ou de o trocar. Existem nada menos que quatro desses números visíveis à lupa no interior da caixa. Inferência: o seu irmão . encontrava-se frequentemente em dificuldades. Inferência secundária: tinha ocasionais momentos de prosperidade, caso contrário não poderia desempenhar o relógio. Finalmente, peço-lhe para observar a placa interior, onde está o buraco da fechadura. Veja as centenas de riscos à volta do orifício - são marcas deixadas onde a chave escorregou. Uma pessoa sóbria não faria esses riscos com a chave. Mas nunca encontrará um relógio de um bêbedo sem eles.
Ao dar-lhe corda, à noite, deixa esses sinais da sua mão pouco firme. Que mistério há em tudo isto?
- É claro como a luz do dia - respondi. - Lamento ter sido injusto consigo. Deveria confiar mais nas suas prodigiosas faculdades. Permite que lhe pergunte se tem presentemente a seu cargo alguma investigação profissional?
- Nenhuma. Daí a cocaína. Não consigo viver sem trabalho cerebral. Que outra razão há para viver? Olhe pela janela. Haverá mundo mais triste, sombrio e inútil que este? Veja como o nevoeiro rodopia pela rua abaixo e desliza sobre as casas cinzentas. Haverá alguma coisa mais desesperadamente prosaica e material? Que interessa possuir faculdades, Doutor, quando não há possibilidade de as exercer? O crime é uma banalidade, a existência é uma banalidade, e apenas as qualidades banais têm uma função nesta terra.
Abrira a boca para retorquir àquela tirada quando, com uma pancada seca na porta, a nossa senhoria entrou, trazendo um cartão sobre a bandeja.
- Uma jovem para o senhor - disse ela, dirigindo-se ao meu companheiro.
- A Menina Mary Morstan - leu ele. - Hum! Não me recordo deste nome. Peça àjovem para subir, Sr." Hudson. Não saia, Doutor. Prefiro que fique.
Capítulo II – A Exposição do Caso
A Menina Morstan entrou na sala com passo firme e uma visível compostura de maneiras. Era uma jovem loura, baixa, graciosa, bem enluvada e vestida com muito bom gosto. Havia, contudo, uma certa modéstia e simplicidade no trajar que sugeriam meios limitados. O vestido era de um bege-acinzentado e sombrio, sem enfeites, e o pequeno turbante tinha a mesma tonalidade triste, aliviada apenas pela sugestão de uma pena branca sobre um dos lados. O rosto não apresentava feições regulares nem beleza de compleição, mas a expressão era doce e amigável. Uns grandes olhos azuis irradiavam singular espiritualidade e simpatia. Entre as muitas mulheres que conhecera, em muitos países espalhados por três continentes, nunca vira um rosto que sugerisse mais claramente uma natureza refinada e sensível. Foi-me impossível não notar, quando ela se sentou, que os lábios e as mãos lhe tremiam. Apresentava todos os sinais de intensa agitação interior.
- Vim ter consigo, Sr. Holmes - disse ela -, porque uma vez ajudou a minha patroa, a Sr.ª Cecil Forrester, a deslindar uma pequena complicação doméstica. Ela ficou muito impressionada com a sua gentileza e habilidade.
- A Sr.ª Cecil Forrester... - repetiu ele pensativamente. - Creio que lhe prestei um pequeno serviço. O caso, porém, se bem me lembro, era muito simples.
- Ela não o considerava assim tão simples. Mas, pelo menos, não pode dizer o mesmo do meu. É difícil para mim imaginar algo mais estranho, mais completamente inexplicável, que a situação em que me encontro.
Holmes esfregou as mãos e os seus olhos brilharam.
Inclinou-se para a frente na cadeira com uma expressão de extraordinária concentração sobre o rosto de nítido perfil aquilino.
- Exponha o seu caso - disse entusiasticamente.
Senti que a minha presença era embaraçosa.
- Vão, certamente, desculpar-me... - disse, levantando-me da cadeira.
Fiquei surpreendido quando a jovem ergueu a mão enluvada para me deter.
- Se o seu amigo - disse ela - fizesse o favor de ficar prestar-me-ia um grande serviço.
Voltei a sentar-me.
- Em poucas palavras - prosseguiu -, são estes os factos. O meu pai era oficial num regimento indiano, e, quando a minha mãe morreu, mandou-me para Inglaterra. Não tinha aqui família, mas fui colocada num bom colégio interno, em Edimburgo, e aí fiquei até aos dezassete anos de idade. Em 1878, o meu pai, que era capitão do seu regimento, teve um ano de licença e voltou. Telegrafou de Londres a dizer que chegara bem e para eu ir ter com ele sem demora, dando como endereço o Langham Hotel. Lembro-me que, na sua mensagem, expressava muito amor e carinho. Ao chegar a Londres fui ao Langham, e informaram-me que o capitão Morstan estava lá hospedado, mas que saíra na noite anterior e não voltara. Esperei todo o dia sem ter notícias dele. Nessa noite, a conselho do gerente do hotel, comuniquei com a polícia. No dia seguinte, colocamos anúncios em todos os jornais. As nossas diligências não deram qualquer resultado; e desde esse dia que nada se sabe acerca do meu infeliz pai. Voltara com o coração cheio de esperança em encontrar alguma paz, algum conforto, e afinal…
- A data? - perguntou Holmes, abrindo o bloco de notas.
- Desapareceu no dia 3 de Dezembro de 1878, aproximadamente há dez anos.
- E a bagagem?
- Ficou no hotel. Não havia lá nada que sugerisse uma explicação. Apenas algumas roupas, alguns livros e um considerável número de curiosidades provenientes das ilhas Andamão.
Ele fora ali um dos oficiais responsáveis pela guarda prisional,
- O seu pai tinha amigos em Londres?
- Que eu saiba, só tinha um: o major Sholto, do seu próprio regimento, o 34 de Infantaria de Bombaim. O major reformara-se há pouco tempo e vivia em Upper Norwood. Claro que entrámos em contacto com ele, mas nem sequer sabia que o seu camarada de armas estava em Inglaterra.
- Um caso singular - observou Holmes.
- Ainda não lhe referi a parte mais singular. Há cerca de seis anos, para ser exacta, no dia 4 de Maio de 1882, apareceu um anúncio no Times em que se pedia o endereço da Menina Mary Morstan e se afirmava que deveria responder, pois se tratava de assunto do seu próprio interesse. Não eram mencionados nome nem morada. Nessa altura começara a trabalhar como governanta para a família da Sr.ª Cecil Forrester. Aconselhada por ela, publiquei o meu endereço na coluna de anúncios. No mesmo dia recebi pelo correio uma pequena caixa de cartão que continha uma enorme pérola brilhante. Nenhum cartão acompanhava a encomenda. Desde então, todos os anos e no mesmo dia, tenho recebido uma caixa semelhante contendo uma pérola igual, sem indicação alguma quanto ao remetente. Um perito afirmou que as pérolas eram de uma espécie rara e de valor considerável. Como pode ver, são muito bonitas.
Abriu então uma caixa chata e mostrou-me seis das mais belas pérolas que eu alguma vez vira.
- A sua exposição é muito interessante - disse Sherlock Holmes. - Houve mais alguma ocorrência?
- Sim, hoje mesmo. Foi por isso que vim ter consigo. Hoje de manhã recebi esta carta que talvez queira ler.
- Obrigado - disse Holmes. - O sobrescrito também, por favor. Carimbo postal, Londres, S. W. Data, 7 de Julho. Hum! Uma dedada num canto, talvez do carteiro.
Papel da melhor qualidade. Sobrescritos a seis dinheiros o maço. Pessoa exigente em matéria de papelaria. Sem endereço.
Esteja junto do terceiro pilar do lado esquerdo no exterior do Lyceum Theatre, esta noite, às sete horas. Se sente receio, traga dois amigos. A senhora foi enganada e deve ser feita justiça. Não traga a polícia. Se o fizer, tudo será em vão.
Um amigo desconhecido.
- Bem, na verdade trata-se de um misteriozinho muito curioso! Que pretende fazer, Menina Morstan?
- É exactamente isso que quero perguntar-lhe.
- Então decerto que iremos, nós os dois e... sim, claro que o Dr. Watson é a pessoa indicada. O seu correspondente fala em dois amigos. Nós já anteriormente trabalhámos juntos.
- Mas quererá vir? - perguntou ela num tom e com uma expressão algo suplicantes.
- Sentir-me-ei orgulhoso e feliz - disse eu, fervorosamente -, se puder ser de algum modo útil.
- São ambos muito gentis - retorquiu ela. - Levo uma vida retirada e não tenho amigos a quem possa recorrer. Estará bem se estiver cá às seis horas?
- Não deve chegar atrasada - disse Holmes. - Ainda há, contudo, um outro ponto. Esta letra é igual à dos endereços das caixas com as pérolas?
- Tenho-os aqui - respondeu, mostrando meia dúzia de pedaços de papel.
- É, de facto, uma cliente exemplar. Tem a intuição correcta. Vejamos então. - Espalhou os papéis sobre a mesa e comparou-os com rápidos olhares incisivos. - A letra está disfarçada, excepto na carta - disse, por fim. - Mas não há dúvida quanto à autoria. Vejam como o i grego se prolonga irreprimivelmente e o floreado do s final. São indubitavelmente da mesma pessoa. Não gostaria de acalentar falsas esperanças, Menina Morstan, mas há alguma semelhança entre esta letra e a do seu pai?
- É completamente diferente.
- Estava à espera dessa resposta. Esperamos então por si às seis. Permita-me que fique com estes papéis. Poderei ainda estudar o assunto. São só três e meia. Então, au revoir.
- Au revoir - disse a nossa visita; e, lançando-nos um olhar brilhante e amável, colocou" novamente a caixa das pérolas ao peito e apressou-se a sair.
Da janela, vi-a descer rapidamente a rua até que o turbante acinzentado e a pena branca se tornaram um ponto no meio da multidão sombria
- Que mulher atraente! - exclamei, voltando-me para o meu companheiro.
Acendera outra vez o cachimbo e afundara-se na cadeira, semicerrando as pálpebras.
- É? - retorquiu languidamente. - Não reparei.
- Você é realmente um autómato, uma máquina de calcular - disse eu. - Por vezes há em si qualquer 'coisa positivamente inumana.
Sorriu gentilmente.
- É extremamente importante - exclamou - não permitir que o nosso juízo seja influenciado por qualidades pessoais. Um cliente é para mim uma mera unidade, um factor de um problema. As qualidades emocionais são contrárias ao raciocínio claro. Posso garantir-lhe que a mulher mais encantadora que conheci foi enforcada por ter envenenado três criancinhas para ficar com o dinheiro do seguro: e que o homem mais repelente que conheço é um filantropo que gastou cerca de um quarto de milhão com os pobres de Londres.
- Neste caso, porém...
- Nunca abro excepções. Uma excepção desmente a regra. Já alguma vez estudou um carácter a partir da caligrafia? Que conclusões tira da letra deste indivíduo?
- É legível e regular - respondi. - Um homem de negócios com alguma força de carácter.
Holmes abanou a cabeça.
- Veja as letras mais altas - disse. - Quase que não ultrapassam as outras. Este d podia ser um a e este l um e. Homens com carácter diferenciam sempre as letras longas, por muito ilegivelmente que escrevam. Há hesitação no k e auto-apreço nas maiúsculas. Agora vou sair. Tenho de fazer algumas averiguações. Recomendo-lhe este livro, um dos mais notáveis que alguma vez foi escrito: Martírio do Homem, de Winwood Reade. Volto daqui a uma hora.
Sentei-me junto à janela com o livro na mão, mas os meus pensamentos estavam muito longe das ousadas especulações do escritor. O meu espírito desviou-se para a nossa última visita - o seu sorriso, a tonalidade rica e profunda da voz, o estranho mistério que pairava sobre a sua vida. Se ela tinha dezassete anos na altura do desaparecimento do pai, devia ter agora vinte e sete - uma idade doce, quando a juventude já perdeu a sua afectação e se tornou um pouco mais sóbria devido à experiência. Continuei nestes devaneios até que me vieram à cabeça pensamentos tão perigosos que me dirigi apressadamente para a secretária e mergulhei furiosamente no mais recente tratado de patologia. Quem era eu, um cirurgião militar com uma perna em baixo e uma conta bancária ainda mais baixa, para me atrever a pensar tais coisas? Ela era uma unidade, um factor - nada mais. Se o meu futuro era negro, decerto que seria melhor encará-lo como um homem que tentar iluminá-lo com meros fogos-fátuos da imaginação.
Capítulo III - À Procura de uma Solução
Quando Holmes voltou já passava das cinco e meia.
Vinha radiante, impetuoso e muito bem-disposto, um estado de espírito que, no seu caso, alternava com acessos da mais profunda depressão.
- Não há grande mistério neste caso - disse, ao mesmo tempo que pegava na chávena de chá que eu lhe servira. - Os factos parecem admitir uma única explicação.
- O quê! Já encontrou a solução?
- Bem, não diria tanto. Apenas descobri um facto sugestivo. Falta ainda acrescentar alguns detalhes. Consegui saber, ao consultar os arquivos do Times, que o major Sholto, de Upper Norwood, reformado do 34 de Infantaria de Bombaim, morreu no dia 28 de Abril de 1882.
- Posso ser muito obtuso, Holmes, mas não consigo perceber que significado tem isso.
- Não? Surpreende-me. Então encare o facto da seguinte maneira. O capitão Morstan desaparece. A única pessoa em Londres que ele poderia ter visitado é o major Sholto. Este último nega ter tido conhecimento de que ele se encontrava em Londres. Quatro anos mais tarde Sholto morre. Uma semana depois da sua morte, a filha do capitão Morstan recebe um valioso presente, o que se repete todos os anos e agora culmina com a carta em que se diz que ela foi enganada. Que engano pode ser este, senão a privação do pai? E por que começam os presentes a chegar imediatamente após a morte de Sholto, a não ser porque o herdeiro de Sholto sabe alguma coisa acerca deste mistério e deseja conceder uma compensação? Tem alguma teoria alternativa que condiga com os factos?
- Mas que estranha compensação! E que estranha maneira de a conceder! Por que escreveria ele uma carta agora e não há seis anos? Na carta fala-se de fazer justiça. Mas que justiça pode ser feita? É difícil admitir que o pai dela ainda esteja vivo.
É essa a única injustiça que temos conhecimento neste caso.
- Há dificuldades, decerto que há dificuldades - disse Sherlock Holmes, pensativamente. - Mas com a nossa expedição desta noite todas elas ficarão resolvidas. Ah, aqui está a carruagem com a Menina Morstan. Está pronto? Então é melhor descermos, pois já passa um pouco da hora.
Peguei no chapéu e na minha bengala mais pesada. Mas reparei que Holmes tirou o revólver da gaveta e meteu-o no bolso. Era óbvio que pensava que o nosso trabalho daquela noite poderia tornar-se muito sério.
A Menina Morstan trazia uma capa preta e o seu rosto sensível estava sereno mas pálido. Teria de ser mais que uma simples mulher para não se sentir pouco à vontade no estranho empreendimento a que nos aventurávamos; no entanto o seu autodomínio era perfeito, tendo respondido prontamente a mais algumas perguntas que Sherlock Holmes lhe colocara.
- O major Sholto era amigo íntimo do meu pai – disse ela. Nas suas cartas costumava fazer imensas alusões ao major. Ele e o Papá comandavam as tropas das ilhas Andamão, razão pela qual conviveram bastante. A propósito... foi encontrado na secretária do meu pai um curioso papel que ninguém conseguiu compreender. Suponho que não tem a mínima importância, mas pensei que quisesse vê-lo e trouxe-o comigo. Aqui está.
Holmes desdobrou o papel cuidadosamente e estendeu-o sobre o joelho. Examinou-o então meticulosamente com a sua lupa dupla.
- É papel manufacturado por nativos indianos - observou. - Já esteve preso com alfinetes a um painel. O diagrama desenhado parece ser uma planta de parte de um grande edifício com numerosas salas, corredores e passagens.
Num certo ponto há uma pequena cruz a tinta vermelha e por cima está 3.3 7 para o lado esquerdo escrito a lápis, desvanecido. No canto esquerdo há um curioso hieróglifo parecido com quatro cruzes em linha e cujos braços se tocam. Por baixo está escrito em letra muito rude: O sinal dos quatro - Jonathan Small, Mahomet Singh, Abdullah Khan, Dost Akbar. Não, confesso que não percebo que relação tem isto com o caso. Mas é evidentemente um documento importante. Foi cuidadosamente guardado numa agenda, pois ambos os lados estão igualmente limpos.
- Encontrámo-lo na agenda do Papá.
- Então guarde-o cuidadosamente, Menina Morstan, pois pode ainda vir a ser-nos útil. Começo a suspeitar que este caso pode revelar-se mais profundo e subtil do que a princípio supus. Tenho de reavaliar as minhas ideias.
Encostou-se no assento da carruagem e percebi, pelas suas sobrancelhas caídas e olhar vazio, que pensava intensamente. A Menina Morstan e eu conversámos em voz baixa acerca da nossa expedição e seu possível desfecho, mas o nosso companheiro conservou o seu impenetrável silêncio até ao fim da viagem.
Estávamos em Setembro e ainda não eram sete horas, mas o dia fora cinzento e um nevoeiro denso e penetrante descia sobre a grande cidade. Nuvens cor de lama abatiam-se tristemente sobre as ruas lamacentas. Ao longo da Strand os candeeiros eram apenas manchas enevoadas de luz difusa que lançavam círculos de débil claridade-sobre o pavimento húmido. A luminosidade amarela das montras das lojas projectava-se no ar vaporoso e deslizava lugubremente pela rua cheia de gente. Havia, para o seu espírito, algo de misterioso e fantástico na interminável sucessão de rostos que passavam através daqueles estreitos feixes de luz - rostos tristes e alegres, preocupados e felizes.
Como toda a humanidade, saíam da obscuridade para a luz e novamente voltavam à obscuridade. Não sou facilmente impressionável, mas a atmosfera carregada daquela pesada noite, acrescida do estranho caso em que estávamos' envolvidos, punha-me nervoso e deprimido. Podia ver pelo seu ar que a Menina Morstan experimentava o mesmo sentimento. Apenas Holmes conseguia elevar-se acima destas influências triviais. Segurava o bloco de notas aberto sobre o joelho e, de tempos a tempos, escrevia números e apontamentos à luz da sua lanterna de bolso.
No Lyceum Theatre a multidão adensava-se junto às entradas laterais. Em frente, um cortejo de cabriolés e carruagens de quatro rodas avançava ruidosamente, ao mesmo tempo que iam descendo homens com peitilhos de camisa e mulheres com xailes e diamantes. Ainda não atingíramos o terceiro pilar, que era o nosso ponto de encontro, quando um homem baixo, moreno e enérgico, com vestes de cocheiro, nos abordou.
- São os acompanhantes da Menina Morstan? - inquiriu.
- Sou a Menina Morstan e estes dois cavalheiros são meus amigos - disse ela.
O homem lançou-nos um olhar extremamente penetrante e inquiridor.
- Vai-me desculpar - disse, com ar algo obstinado, mas queria pedir-lhe que me desse a sua palavra em como nenhum dos seus companheiros é da polícia.
- Dou-lhe a minha palavra - respondeu ela.
Ele assobiou estridentemente, um rapaz avançou com uma carruagem e abriu a porta. O homem que nos abordara subiu para o assento do cocheiro e nós ocupámos os lugares no interior. Imediatamente o condutor chicoteou o cavalo e partimos num andamento furioso através das ruas enevoadas.
A situação era curiosa. Dirigíamo-nos para um destino desconhecido, numa missão desconhecida. Mas, ou o convite que nos fora feito se tratava de um logro - o que era uma hipótese absurda - ou então tínhamos bons motivos para pensar que nos esperavam importantes acontecimentos no fim da viagem. O comportamento da Menina Morstan era, como sempre, resoluto e calmo. Tentei animá-la e diverti-la com reminiscências das minhas aventuras no Afeganistão; mas, para dizer a verdade, eu próprio estava tão excitado com aquela situação, tão curioso acerca do nosso destino, que as minhas histórias se tornaram um pouco confusas. Disse-me ela, posteriormente, que lhe contara um emocionante episódio em que um mosquete olhara para dentro da minha tenda, certa madrugada, tendo eu disparado sobre ele uma cria de tigre de dois canos. A princípio ainda fazia uma ideia da direcção que tomáramos; mas, em breve, devido ao nosso andamento, ao nevoeiro e ao meu limitado conhecimento de Londres perdi todas as referências e nada mais soube excepto que parecia tratar-se de uma longa viagem. Sherlock Holmes, pelo contrário, nunca em falta, murmurava os nomes das praças e tortuosas ruas secundárias por onde a carruagem ia passando.
- Rochester Row. Agora Vincent Square. Agora entrámos na Vauxhall Bridge Road. Parece que nos dirigimos para os lados de Surrey. Sim, creio que é isso. Agora estamos sobre a ponte. Consegue-se vislumbrar o rio.
Na verdade tivemos uma fugaz visão de um trecho do Tamisa, com os candeeiros a brilhar sobre as extensas e silenciosas águas; mas a carruagem movia-se rapidamente e logo entrou num labirinto de ruas na outra margem.
- Wordsworth Road - disse o meu companheiro. - Priory Road. Lark Hall Lane. Stockwell Place. Robert Street. Cold Harbour Lane. A nossa investigação parece não nos levar para zonas muito elegantes.
Atingíramos, de facto, um duvidoso e desagradável bairro dos arredores. As longas filas de monótonas casas de tijolo eram apenas interrompidas pela espalhafatosa luminosidade dos bares nas esquinas. Depois surgiram filas de vivendas de dois andares, cada uma com um pequeno jardim em frente, e outra vez uma interminável sucessão de novos edifícios de tijolo - os tentáculos monstruosos que a cidade gigante lançava em direcção ao campo. Por fim, a carruagem parou junto da terceira casa de um bairro novo. Nenhuma das outras casas era habitada, e aquela junto da qual parámos estava às escuras como as vizinhas, vendo-se apenas uma luz trémula na janela da cozinha. Ao batermos, porém, a porta foi imediatamente aberta por um criado hindu, com um turbante amarelo, de folgadas roupas brancas e cinta amarela. Havia qualquer coisa de estranho e incongruente naquela figura oriental emoldurada na porta banal de uma casa suburbana de terceira classe.
- O sahib está à vossa espera - disse ele, e, mal falara, ouviu-se uma voz esganiçada vinda da sala interior.
- Trá-los para aqui, Khidmutgar - gritava aquela voz. - Trá-los directamente para aqui.
Capítulo IV - A História do Homem Calvo
Seguimos o indiano por um corredor sórdido, mal iluminado e pior mobilado, até que atingimos, do lado direito, uma porta que ele abriu. Um clarão de luz amarela envolveu-nos, no centro do qual estava um homem de cabeça pontiaguda, circundada por um tufo de cabelo ruivo a marginar o crânio calvo e brilhante que sobressaía como o cume de uma montanha entre abetos. Ao levantar-se, começou a enrolar as mãos uma na outra, ao mesmo tempo que o rosto se contraía incessantemente - ora sorrindo, ora franzindo as sobrancelhas, mas nunca, sequer por um instante, ficando sereno. A natureza dotara-o de um lábio pendente e uma fileira muito visível de dentes amarelos e irregulares, que ele tentava em vão esconder, passando constantemente a mão sobre a parte inferior do rosto. Apesar da calvice evidente, dava a impressão de ser jovem. De facto, tinha apenas trinta anos.
- Um seu servo, Menina Morstan - não parava de repetir com voz fina, aguda. - Um vosso servo, cavalheiros.
Façam o favor de entrar no meu pequeno aposento privado. Uma sala acanhada, mas mobilada a meu gosto. Um oásis artístico no gritante deserto do sul de Londres.
Todos ficámos espantados com o aspecto da sala para a qual nos convidara a entrar. Naquela triste casa, parecia tão deslocada como um diamante de primeira água num suporte de lata. Ricas e vistosas cortinas e tapeçarias cobriam as paredes, vendo-se aqui e ali uma pintura ricamente emoldurada ou um jarrão oriental. A carpeta era cor de âmbar e preta, tão macia e espessa que os pés se afundavam agradavelmente como se estivessem em cima de uma cama de musgo. Duas grandes peles de tigre sobre a carpeta e um enorme narguilé, que estava sobre uma esteira a um canto, aumentavam a sugestão de luxo oriental.
No centro da sala um candeeiro de prata com a forma de uma pomba estava suspenso num fio de ouro quase invisível. Ao arder, enchia o ar com um odor subtil e aromático.
- Sr. Thaddeus Sholto - disse o homenzinho, continuando a contrair o rosto e a sorrir. - É o meu nome. É a Menina Morstan, claro. E estes cavalheiros...
- O Sr. Sherlock Holmes e o Dr. Watson.
- Um médico, hem? - exclamou, muito excitado.
- Trouxe o seu estetoscópio? Será que posso pedir-lhe... far-me-ia a gentileza? Duvido muito da minha válvula mitral. Confio na aórtica, mas agradeceria a sua opinião acerca da mitral.
Auscultei-lhe o coração, como me pedira, mas não detectei qualquer irregularidade, para além do facto de estar extremamente amedrontado, tremendo dos pés à cabeça.
- Parece estar tudo normal - disse eu. - Não há razão para se preocupar.
- Vai desculpar a minha ansiedade, Menina Morstan - observou delicadamente. - Sou muito atreito a doenças e há bastante tempo que desconfio desta válvula. Fico satisfeito por saber que não há problema. Se o seu pai, Menina Morstan, tivesse evitado esforçar o coração, ainda hoje podia estar vivo.
Tive vontade de esmurrar o homem, pois fiquei indignadíssimo com aquela referência dura e inconveniente acerca de um assunto tão delicado. A Menina Morstan sentou-se e o seu rosto ficou extremamente pálido.
- O meu coração dizia-me que ele morrera – afirmou.
- Posso fornecer-lhe todos os detalhes - disse o homem - e, além disso, posso e vou fazer-lhe justiça, diga o que disser o meu mano Bartholomew. Estou muito satisfeito por os seus amigos estarem aqui, não só como acompanhantes, mas como testemunhas do que tenciono dizer e fazer. Nós os três poderemos enfrentar o meu irmão Bartholomew. Mas não vamos envolver estranhos... nem polícias nem funcionários públicos.
Podemos bem resolver tudo entre nós sem qualquer interferência. Nada desagradaria mais o mano Bartholomew do que qualquer tipo de publicidade.
Sentou-se sobre um canapé baixo e fitou-nos inquiridoramente, piscando os olhos cansados e aguados.
- Pela minha parte - disse Holmes -, tudo o que nos resolver contar ficará entre nós.
Acenei afirmativamente em sinal de concordância.
- Muito bem! - disse ele. - Aceita um copo de Chianti, Menina Morstan? Ou de Tokay? Não tenho outros vinhos. Posso abrir uma garrafa. Não? Bem, então espero que não vos incomode o fumo do tabaco, o odor balsâmico do tabaco oriental. Estou um pouco nervoso e o meu narguilé é um sedativo precioso.
Acendeu-o com um pavio e o fumo borbulhou alegremente através da água de rosas. Sentámo-nos os três em semicírculo, com a cabeça inclinada para a frente e o queixo assente nas mãos, enquanto o estranho homenzinho de cabeça brilhante, ao centro, dava sucessivas cachimbadas.
- Quando decidi fazer-vos esta comunicação – disse ele - pensei que podia dar-vos a minha morada; mas receei que não acedessem ao meu pedido e trouxessem convosco gente indesejável. Tomei a liberdade, portanto, de marcar um encontro de modo a que o meu empregado Williams vos pudesse ver primeiro. Confio inteiramente no seu discernimento, tendo ele ordens para não vos trazer se tivesse dúvidas. Desculpar-me-ão estas precauções, mas sou uma pessoa reservada, diria mesmo, refinada, em questões de gosto e nada há de mais inestético que um polícia. Tenho uma natural repulsa por todas as formas de materialismo grosseiro. Raramente entro em contacto com as multidões. Vivo, como vêem, num ambiente de certa elegância.
Posso dizer que sou um patrono das artes. É a minha fraqueza. Aquela paisagem é um Corot genuíno. Um especialista poderia levantar dúvidas em relação ao Salvator Rosa; mas a autenticidade do Bouguereau é indiscutível. Sou um apreciador da moderna escola francesa.
- Desculpe, Sr. Sholto - disse a Menina Morstan -, mas estou aqui a seu pedido para saber qualquer coisa que deseja contar-me. É muito tarde, e gostaria que o nosso encontro fosse o mais breve possível.
- Vai demorar algum tempo - respondeu ele -, pois decerto que teremos de ir a Norwood ver o mano Bartholomew. Deveremos ir todos, tentar mudar a opinião do mano. Está muito zangado comigo por eu ter decidido fazer o que me parecia mais acertado. Discutimos muito ontem à noite. Não podem imaginar como ele é terrível quando fica zangado.
- Se vamos a Norwood, seria talvez melhor partirmos imediatamente - atrevi-me a observar.
Ele riu até ficar com as orelhas muito encarnadas.
- Não seria o mais indicado! - exclamou. - Não sei que diria ele se eu vos levasse precipitadamente. Não, tenho de vos preparar, pondo-vos ao corrente da situação. Antes de tudo, devo dizer que há nesta história vários aspectos que eu próprio ignoro. Só posso apresentar os factos tal como os conheço.
»O meu pai era, como já devem ter percebido, o Major John Sholto, que pertenceu ao exército indiano. Reformou-se há cerca de onze anos e veio viver para Pondicherry Lodge em Upper Norwood. Prosperara na Índia e trouxe consigo bastante dinheiro, uma grande colecção de valiosas curiosidades e alguns criados nativos. Tirando partido da sua boa situação, comprou uma casa onde passou a viver com grande luxo. O meu irmão gémeo Bartholomew e eu eramos os únicos filhos.
Posso dizer que sou um patrono das artes. É a minha fraqueza. Aquela paisagem é um Corot genuíno. Um especialista poderia levantar dúvidas em relação ao Salvator Rosa; mas a autenticidade do Bouguereau é indiscutível. Sou um apreciador da moderna escola francesa.
- Desculpe, Sr. Sholto - disse a Menina Morstan -, mas estou aqui a seu pedido para saber qualquer coisa que deseja contar-me. É muito tarde, e gostaria que o nosso encontro fosse o mais breve possível.
- Vai demorar algum tempo - respondeu ele -, pois decerto que teremos de ir a Norwood ver o mano Bartholomew. Deveremos ir todos, tentar mudar a opinião do mano. Está muito zangado comigo por eu ter decidido fazer o que me parecia mais acertado. Discutimos muito ontem à noite. Não podem imaginar como ele é terrível quando fica zangado.
- Se vamos a Norwood, seria talvez melhor partirmos imediatamente - atrevi-me a observar.
Ele riu até ficar com as orelhas muito encarnadas.
- Não seria o mais indicado! - exclamou. - Não sei que diria ele se eu vos levasse precipitadamente. Não, tenho de vos preparar, pondo-vos ao corrente da situação. Antes de tudo, devo dizer que há nesta história vários aspectos que eu próprio ignoro. Só posso apresentar os factos tal como os conheço.
»O meu pai era, como já devem ter percebido, o Major John Sholto, que pertenceu ao exército indiano. Reformou-se há cerca de onze anos e veio viver para Pondicherry Lodge em Upper Norwood. Prosperara na Índia e trouxe consigo bastante dinheiro, uma grande colecção de valiosas curiosidades e alguns criados nativos. Tirando partido da sua boa situação, comprou uma casa onde passou a viver com grande luxo. O meu irmão gémeo Bartholomew e eu eramos os únicos filhos.
»Lembro-me muito bem da sensação causada pelo desaparecimento do capitão Morstan. Lemos os pormenores nos jornais e, sabendo que ele fora amigo do nosso pai, discutimos abertamente o caso na sua presença. Costumava juntar-se-nos nas nossas especulações acerca do que poderia ter acontecido. Nem por um instante suspeitámos de que ele conhecia todo o segredo, de que entre todos os homens apenas ele conhecia o destino de Arthur Morstan.
»Sabíamos, porém, que algum mistério, algum perigo real, pairava sobre o nosso pai. Tinha muito medo de sair sozinho e mantinha sempre dois pugilistas como porteiros em Pondicherry Lodge. Williams, que vos trouxe esta noite, era um deles. Foi em tempos campeão de pesos leves em Inglaterra. O nosso pai nunca nos disse o que temia, mas tinha uma evidente aversão a homens com pernas de pau. Em certa ocasião chegou até a disparar um tiro de revólver sobre um homem com uma perna de pau que era afinal um inofensivo comerciante à procura de encomendas. Tivemos de pagar uma grande soma para abafar o assunto. Eu e o meu irmão pensávamos que se tratara de um mero capricho do nosso pai, mas acontecimentos posteriores fizeram-nos mudar de opinião.
»No princípio de 1882 o meu pai recebeu uma carta da Índia que lhe causou um grande choque. Quase que desmaiou à mesa do pequeno-almoço quando a abriu e, desde esse dia, ficou doente até morrer. O que estava na carta nunca conseguimos saber, mas pude ver, enquanto ele a segurava, que era curta e escrita com letra apressada e irregular. Há anos que o meu pai sofria de uma grande depressão, mas então piorou rapidamente. Em finais de Abril fomos informados de que já não havia qualquer esperança de vida e que ele queria falar-nos pela última vez.
»Quando entrámos no seu quarto, estava encostado a algumas almofadas e respirava pesadamente. Pediu-nos para fecharmos a porta e para nos aproximarmos cada um de um lado da cama. Então, agarrando as nossas mãos fez-nos uma notável declaração numa voz cheia de emoção e, também, de dor. Vou tentar reproduzi-la nas suas próprias palavras.
»«Só há uma coisa», disse ele, «que me pesa na consciência neste último momento. É a minha conduta em relação à pobre órfã Morstan. Esta maldita cobiça, que tem sido o grande pecado da minha vida, afastou-a do tesouro da metade dele, pelo menos, a que tinha direito. E tão insensata é a avareza que nem eu próprio tirei partido dele. O simples sentimento de posse era-me tão querido que não suportaria dividi-lo com alguém. Vejam aquele colar de Pérolas ao lado do frasco de quinino. Nem isso consegui partilhar, embora tivesse a intenção de lho enviar. Vós, meus filhos, ficais encarregados de lhe dar a sua parte do tesouro de Agra. Mas nada lhe enviem, nem sequer o colar antes de eu partir. Apesar de estar tão mal, ainda talvez possa recompor-me.»
»«Vou dizer-vos como morreu Morstan», prosseguiu. «Durante anos sofreu do coração, mas ocultou esse facto a toda a gente. Só eu sabia. Quando estávamos na Índia sucedeu que, devido a uma notável série de circunstâncias nos tornámos donos de um grande tesouro. Trouxe-o para Inglaterra. Na noite da sua chegada; Morstan dirigiu-se imediatamente para aqui com a intenção de reclamar a parte a que tinha direito, Veio da estação e 'foi recebido pelo meu velho e leal Lal Chowdar, que já morreu. Morstan e eu não chegámos a acordo quanto à divisão do tesouro e discutimos acaloradamente. Morstan levantara-se da cadeira, extremamente irado, quando repentinamente levou a mão ao peito, ficou roxo e caiu para trás, fazendo um golpe na cabeça ao bater na esquina do cofre do tesouro.
Quando me inclinei sobre ele verifiquei, horrorizado, que estava morto.»
»«Fiquei sentado, durante muito tempo, sem saber o que fazer. Claro que o meu primeiro impulso foi pedir auxílio; mas logo me apercebi que provavelmente me acusariam de assassínio. A morte dele a meio de uma discussão e o golpe na cabeça serviriam para me incriminar, Além disso, uma investigação oficial traria à luz alguns factos acerca do tesouro; que eu queria, acima de tudo, manter em segredo. Ele dissera-me que ninguém sabia do seu paradeiro. Não parecia ser necessário que alguém viesse a saber.»
»«Estava ainda a pensar no assunto quando, levantando os olhos, vi o meu criado, Lal Chowdar, no limiar da porta. Entrou, fechou a porta e disse: ‘Não tenha medo, sahib, ninguém precisa de saber que o matou. Vamos escondê-lo, e quem o encontrará?’ Retorqui: ‘Não o matei.’ Lal Chowdar abanou a cabeça e sorriu. ‘Eu ouvi tudo, sahib, ouvi-o discutir e ouvi o golpe que lhe deu. Mas os meus lábios ficarão selados. Estão todos a dormir cá em casa. Vamos levá-lo daqui para fora.’ Foi o suficiente para me decidir.
Se o meu próprio criado não acreditava na minha inocência como conseguiria prová-la a doze estúpidos comerciantes na bancada do júri de um tribunal? Lal Chowdar e eu escondemos o corpo nessa mesma noite, e passados poucos dias os jornais de Londres estavam cheios de referências ao misterioso desaparecimento do capitão Morstan. Como vêem, não tenho culpa do que aconteceu. Sou culpado, sim, do facto de termos escondido o corpo e o tesouro, ficando eu com a minha parte e com a de Morstan. Pretendo, por conseguinte, que façam a restituição. Aproximem os vossos ouvidos da minha boca. O tesouro está escondido...»
»Neste instante a sua expressão sofreu uma horrível transformação; o olhar tornou-se selvagem, o queixo descaiu e ele gritou com uma voz que nunca esquecerei: «Mandem-no embora! Por amor de Deus, mandem-no embora!» Olhámos ambos para a janela atrás de nós onde o seu olhar se fixara. Um rosto no meio da escuridão observava-nos através da janela. Víamos o nariz esbranquiçado devido à pressão sobre a vidraça. Era um rosto com barba abundante, olhos cruéis e uma expressão extremamente malévola. Eu e o meu irmão corremos para a janela, mas o homem desaparecera. Quando voltámos para junto do meu pai a cabeça tombara-lhe e o pulso parara de bater.
»Nessa noite fizemos buscas no jardim: mas não encontrámos sinal algum do intruso, para além de uma única pegada que era visível sobre o canteiro de flores por baixo da janela. Aquela única marca poderia levar-nos a pensar que o rosto selvagem e cruel era fruto da nossa imaginação. Cedo, porém, tivemos uma outra e mais evidente prova da existência de actividades secretas à nossa volta. A janela do quarto do meu pai foi encontrada aberta pela manhã, os seus armários e arcas tinham sido revolvidos, e sobre o cofre estava um bocado de papel com as palavras: O sinal dos quatro. O que significava essa frase ou quem poderia ser o nosso misterioso visitante nunca o descobrimos. Tanto quanto sabemos, nada foi roubado, embora estivesse tudo remexido. O meu irmão e eu naturalmente que associámos este estranho incidente com o medo que perseguiu o meu pai durante toda a sua vida, mas o que aconteceu continua a ser um mistério para nós.
O homenzinho reclinou-se para reacender o narguilé e, pensativamente, tirou cachimbadas durante alguns momentos. Todos nós estávamos absortos, escutando a sua extraordinária narrativa.
Ao ouvir a breve referência à morte do pai, a Menina Morstan ficara extremamente pálida, e cheguei a pensar que estava prestes a desmaiar. Recompôs-se, todavia, ao beber um copo de água deitada por mim, calmamente, de uma garrafa veneziana que estava numa mesa ao lado. Sherlock Holmes recostou-se na cadeira, com uma expressão abstracta e as pálpebras caídas sobre os olhos brilhantes. Ao olhar para ele não pude deixar de pensar como nesse mesmo dia se queixara amargamente da banalidade da vida. Aqui estava um problema que, no mínimo, requeria o máximo da sua sagacidade. O Sr. Thaddeus Sholto fitou sucessivamente cada um de nós, com um orgulho óbvio no efeito que a história produzira, e prosseguiu depois por entre as fumaças do seu enorme cachimbo.
- Eu e o meu irmão estávamos, como podem imaginar, muito excitados com o tesouro de que o meu pai falara. Durante semanas e meses cavámos em todos os cantos do jardim sem descobrirmos onde estava. Era de enlouquecer pensar que ele ia revelar o esconderijo exactamente quando morreu. Podíamos imaginar o esplendor das restantes riquezas ao ver o colar que ele nos mostrara. Acerca desse colar o meu irmão Bartholomew e eu tivemos uma discussão. Era evidente que as pérolas tinham grande valor, e ele não queria desfazer-se delas, pois, já que estamos entre amigos posso dizê-lo, o meu irmão tem um pouco o mesmo defeito do meu pai. Também pensava que desfazermo-nos do colar poderia dar origem a bisbilhotices, o que, por fim, nos causaria problemas. Só consegui persuadi-lo a deixar-me obter o endereço da Menina Morstan e enviar uma pérola de tempos a tempos para que, pelo menos, ela nunca tivesse dificuldades.
- Foi uma amável lembrança - disse sinceramente a nossa companheira. - Foi extremamente generoso.
O homenzinho agitou a mão em sinal de protesto.
- Nós éramos seus depositários. Era esse o meu ponto de vista, embora o mano Bartholomew não fosse da mesma opinião. Tínhamos muito dinheiro. Não desejava ter mais. Além disso, seria de muito mau gosto tratar uma jovem de um modo tão mesquinho. Le mauvais gotu. mêne au crime (o mau gosto leva ao crime). Os Franceses expressam estas coisas muito claramente. A nossa diferença de opiniões acerca do assunto foi a tal ponto que achei melhor arranjar uma casa para mim; deixei Pondicherry Lodge, levando comigo o velho Khitmutgar e Williams. Ontem, porém, soube que um acontecimento de extrema importância ocorrera. O tesouro fora encontrado. Comuniquei imediatamente com a Menina Morstan, e apenas nos resta agora ir a Norwood pedir a nossa parte. Expliquei o meu ponto de vista, ontem à noite, ao meu irmão, pelo que somos, não direi bem-vindos, mas, pelo menos, visitas esperadas.
O Sr. Thaddeus Sholto terminou e continuou com os seus tiques, sentado no luxuoso sofá. Ficámos todos calados, pensando no novo rumo que o caso tomara. Holmes foi o primeiro a pôr-se de pé.
- O senhor procedeu bem sob todos os aspectos - afirmou. - É possível que lhe possamos fazer uma pequena retribuição, lançando alguma luz sobre aquilo que ainda permanece obscuro para si. Mas, como disse a Menina Morstan, é tarde, e seria melhor partirmos sem demora.
O nosso homem enrolou o tubo do narguilé e tirou de trás de uma cortina um comprido sobretudo com gola e punhos de astracã. Depois de o abotoar até ao pescoço, pôs um gorro de pele de coelho com abas caídas, que lhe cobriam as orelhas, de modo que a única parte visível do seu corpo era o rosto agitado e pálido.
- A minha saúde é muito frágil - observou, ao conduzir-nos pelo corredor. - Isso faz de mim um hipocondríaco.
A nossa carruagem esperava-nos lá fora, e era evidente que tudo fora preparado antecipadamente, pois o cocheiro iniciou imediatamente a marcha a grande velocidade. Thaddeus Sholto falava incessantemente numa voz que se elevava bastante acima do ruído das rodas.
- Bartholomew é um tipo esperto. Como julgam que ele descobriu o tesouro? Chegara à conclusão de que estava algures dentro de casa, tendo por isso calculado o volume da casa e tirado medidas em todo o lado para que se tivesse em conta cada centímetro. Entre outras coisas, descobriu que a altura do edifício era de vinte e dois metros, mas ao adicionar as alturas das salas e dando um desconto para o espaço entre elas, conhecido através de perfurações, não obteve um total superior a vinte metros e meio. Havia um metro e meio a mais. Só podia ser no cimo do edifício. Fez então um buraco no tecto de ripas e estuque da sala mais elevada e aí, como era de esperar, encontrou um pequeno sótão que ninguém conhecia. Estava lá o cofre do tesouro, assente sobre duas traves. Desceu-o através do buraco e deixou-o ficar ali. Calcula que o valor das jóias não seja inferior a meio milhão de libras esterlinas.
Perante a menção desta soma gigantesca olhámos uns para os outros com os olhos arregalados. A Menina Morstan, se conseguíssemos fazer valer os seus direitos, deixaria de ser uma governanta necessitada e transformar-se-ia na mais rica herdeira de Inglaterra. Decerto que era motivo para um amigo leal se congratular por tais notícias, porém envergonho-me de dizer que o egoísmo se apoderou da minha alma e que o meu coração ficou pesado como chumbo. Balbuciei algumas hesitantes palavras de felicitação e fiquei depois cabisbaixo, surdo aos disparates do nosso recém-conhecido.
Era sem dúvida um hipocondríaco inveterado, e eu estava vagamente consciente de que ele me apresentava intermináveis séries de sintomas, implorando informações quanto à composição e acção de inúmeros remédios, alguns dos quais transportava dentro de uma caixa de couro que trazia no bolso. Espero que não se lembre de nenhuma das respostas que lhe dei naquela noite. Holmes afirma ter eu prevenido o homenzinho que era extremamente perigoso tomar mais de duas gotas de óleo de rícino, enquanto lhe recomendei largas doses de estricnina como sedativo. Tivesse ou não sido assim, o certo é que fiquei aliviado quando a carruagem parou, com um solavanco, e o cocheiro desceu para abrir a porta.
- Estamos em Pondicherry Lodge, Menina Morstan disse o Sr. Thaddeus Sholto ao estender-lhe a mão para a ajudar a sair.
Capítulo V - A Tragédia de Pondicherry Lodge
Eram quase onze horas quando iniciámos a última etapa das aventuras daquela noite. Deixáramos para trás o nevoeiro húmido da grande cidade, e a noite estava bastante agradável. Um vento morno soprava do oeste, nuvens carregadas deslizavam lentamente no céu, uma meia-lua espreitava às vezes pelas abertas. Embora houvesse bastante claridade, Thaddeus Sholto pegou numa lanterna da carruagem para iluminar o caminho.
Pondicherry Lodge situava-se numa propriedade rodeada por um alto muro de pedra com vidros partidos em cima. Uma porta estreita, e reforçada com grampos de ferro, era a única entrada. Sobre ela o nosso guia deu algumas pancadas parecidas com o bater de um carteiro.
- Quem é? - gritou uma voz rude lá dentro.
- Sou eu, McMurdo. Já devias conhecer o meu bater.
Ouviu-se resmungar e o tilintar de chaves. A porta abriu-se pesadamente, aparecendo à entrada um homem baixo e entroncado. A luz amarela da lanterna incidiu sobre o rosto proeminente e os olhos desconfiados a pestanejar.
- É o Sr. Thaddeus? Mas quem são os outros? Não recebi ordens do patrão acerca deles.
- Não, McMurdo? Admira-me muito! Disse ontem à noite ao meu irmão que traria alguns amigos.
- Ele ainda não saiu hoje do quarto, Sr. Thaddeus, e não recebi ordens. Sabe muito bem que tenho de acatar as normas. Posso deixá-lo entrar, mas os seus amigos terão de ficar onde estão.
Era um obstáculo inesperado. Thaddeus Sholto olhou em volta com um ar de perplexidade e impotência.
- Isso é muito incorrecto da sua parte, McMurdo! - exclamou. - Eu responsabilizo-me por eles. Vem connosco uma jovem que não pode ficar à espera na rua a esta hora.
- Lamento muito, Sr. Thaddeus - disse o porteiro inexoravelmente. - Pode ser que sejam seus amigos, mas não do patrão. Ele paga-me para eu cumprir o meu dever, e eu cumpro o meu dever. Não conheço nenhum dos seus amigos.
- Oh, conhece sim, McMurdo! - exclamou genialmente Sherlock Holmes. - Não creio que se tenha esquecido de mim. Não se lembra daquele amador que lutou três roundsconsigo, há quatro anos, na noite da sua homenagem?
- O Sr. Sherlock Holmes! - grunhiu o pugilista. - Meu Deus! Como foi possível não o reconhecer? Se em vez de ficar aí tão quieto tivesse avançado e desferido aquele seu famoso murro sob o maxilar, tê-lo-ia reconhecido de imediato, sem sombra de dúvida. Ah, você é daqueles que desperdiçam os dons que têm! Se tivesse tomado o gosto pelo pugilismo, chegaria longe.
- Está a ver, Watson, se tudo o mais falhar, ainda tenho em aberto uma das profissões científicas - disse Holmes rindo. - O nosso amigo não vai agora deixar-nos ao frio, tenho a certeza.
- Entre, entre... e os seus amigos também - respondeu o homem. - Desculpe, Sr. Thaddeus, mas as ordens são muito rigorosas. Tinha de saber quem eram os seus amigos antes de os deixar entrar.
Lá dentro, um caminho de saibro serpenteava através de descampados até uma enorme casa, quadrada e prosaica, completamente mergulhada na sombra, excepto onde um raio de luar batia, reflectindo-se numa janela do sótão. As grandes dimensões do edifício, com a sua tristeza e silêncio mortal, gelavam o coração. Até Thaddeus Sholto parecia constrangido, e a lanterna tremia-lhe na mão.
- Não consigo perceber - afirmou. - Deve haver qualquer mal-entendido. Disse a Bartholomew que viríamos, e, no entanto, não há luz na janela. Não sei o que pensar.
- Ele costuma guardar o edifício sempre desta maneira? - perguntou Holmes.
- Sim; conservou o hábito do meu pai. Era o filho favorito, sabe? Por vezes penso que o meu pai lhe contou mais coisas que a mim. Aquela janela onde bate o luar é a de Bartholomew. Está bastante iluminada, mas parece que a luz não vem lá de dentro.
- Não - disse Holmes. - Mas vislumbro uma luz naquela janelinha ao pé da porta.
- Ah, é o quarto da governanta, onde fica a velha Sr.ª Bernstone. Ela poderá esclarecer-nos. Mas talvez seja melhor esperarem aqui um ou dois minutos, porque se entramos todos, não tendo ela conhecimento da nossa vinda, pode ficar assustada. Mas... silêncio!, que é aquilo?
Ergueu a lanterna na mão trémula e os círculos de luz projectaram-se à nossa volta. A Menina Morstan agarrou o meu pulso, e pusemo-nos todos à escuta com os corações a bater violentamente. Da grande casa escura veio, através da noite silenciosa, um tristíssimo e deplorável som - o lamento penetrante de uma mulher aterrorizada.
- É a Sr.ª Bernstone - disse Sholto. - É a única mulher da casa. Esperem aqui. Voltarei num segundo.
Correu para a porta e bateu, à sua maneira peculiar. Podemos ver uma mulher idosa, alta, deixá-lo entrar, que se mostrou satisfeita por o ver.
- Oh, Sr. Thaddeus, ainda bem que veio! Ainda bem, Sr. Thaddeus!
Ouvimo-la reiterar a sua satisfação até que a porta se fechou e a sua voz se tornou um sussurro abafado.
O nosso guia deixara-nos a lanterna. Holmes fê-la incidir sobre a casa e sobre os montes de terra à sua volta. Eu e a Menina Morstan continuámos juntos, a sua mão na minha. O amor é uma coisa espantosamente subtil, pois ali estávamos os dois, nunca nos tendo visto antes, nunca tendo trocado qualquer palavra ou sequer um olhar de afecto, e, contudo, naquela hora de aflição as nossas mãos procuravam-se instintivamente.
Posteriormente achei isso maravilhoso, mas naquele momento parecia a coisa mais natural do mundo protegê-la, e, como muitas vezes depois me disse, ela sentia o mesmo impulso para procurar em mim consolo e protecção. Ficámos de mãos dadas como duas crianças. Havia paz nos nossos corações apesar de todas as coisas sombrias que nos rodeavam.
- Que lugar estranho! - exclamou ela, olhando em volta.
- Parece que largaram aqui todas as toupeiras de Inglaterra. Já vi uma coisa parecida na encosta de um monte perto de Ballarat, onde os prospectores tinham andado a trabalhar.
- E pelo mesmo motivo - disse Holmes. - Isto são vestígios dos pesquisadores do tesouro. Lembre-se que andaram seis anos à procura. Não admira que o terreno pareça uma saibreira.
Naquele instante a porta da casa abriu-se repentinamente. Thaddeus Sholto saiu a correr com as mãos estendidas para a frente e um olhar aterrorizado.
- Há qualquer coisa de errado com Bartholomew! - gritava. - Estou assustado! Os meus nervos não aguentam.
Estava, de facto, quase a chorar de medo. O seu rosto inquieto e frágil, saindo da gola de astracã, tinha a expressão suplicante e impotente de uma criança aterrorizada.
- Vamos entrar - disse Holmes com a sua habitual firmeza.
- Sim, vamos! - suplicou Thaddeus Sholto. - Não me sinto em condições de dar ordens.
Seguimo-lo até ao quarto da governanta que ficava do lado esquerdo do corredor. A velha mulher andava de um lado para o outro com um olhar assustado e gestos nervosos, mas o facto de ver a Menina Morstan pareceu tê-la acalmado.
- Deus seja louvado por este rosto calmo e doce! - exclamou, soluçando histericamente. - Faz-me bem olhar para si. Oh, tive hoje um dia tão difícil!
A nossa companheira afagou-lhe a mão magra, gasta pelo trabalho, e murmurou algumas palavras de consolação que devolveram alguma cor ao rosto pálido daquela mulher.
- O patrão fechou-se lá dentro e não me responde - explicou a governanta. - Estive todo o dia à espera que me chamasse, pois muitas vezes ele gosta de estar sozinho; mas tive medo que se tivesse passado qualquer coisa má e, há uma hora, subi lá acima e espreitei pelo buraco da fechadura. Tem de lá ir, Sr. Thaddeus... Tem de lá ir e ver por si próprio. Já vi muitas vezes, durante dez anos, o Sr. Bartholomew Sholto triste e alegre, mas nunca com uma cara como agora.
Sherlock Holmes pegou na lanterna e foi à frente, pois os dentes de Thaddeus Sholto batiam como castanholas. Tremia tanto que tive de lhe segurar o braço, ao subirmos as escadas, pois quase que não se sustinha nas pernas. Enquanto subíamos, por duas vezes Holmes tirou a lupa do bolso para examinar cuidadosamente algumas marcas que me pareciam ser meras manchas de poeira sobre a passadeira da escada. Caminhava lentamente, degrau a degrau, segurando a lanterna junto ao chão e lançando olhares penetrantes à esquerda e à direita. A Menina Morstan ficara para trás com a assustada governanta.
O terceiro lance de escadas terminava num corredor, com um certo comprimento, uma tapeçaria indiana do lado direito e três portas do lado esquerdo. Holmes avançou do mesmo modo lento e metódico, enquanto o seguíamos de perto, projectando-se atrás de nós, sobre o chão do corredor, grandes sombras negras. A porta que procurávamos era a terceira. Holmes bateu sem receber qualquer resposta, tentando então rodar a maçaneta e abri-la. Mas estava fechada por dentro.
A chave, porém, não obstruía completamente o buraco da fechadura. Sherlock Holmes inclinou-se, espreitou e imediatamente voltou a endireitar-se, tentando retomar o fôlego.
- Há qualquer coisa de diabólico nisto, Watson - disse, afectado como eu nunca o vira. - Veja se percebe o que se passa.
Espreitei pelo buraco da fechadura e recuei horrorizado.
O luar entrava no quarto, iluminando-o com uma claridade difusa, Olhando de frente para mim, e suspenso no ar, pois por baixo tudo era escuro, estava um rosto - exactamente o rosto do nosso companheiro Thaddeus. Era a mesma cabeça pontiaguda e brilhante, o mesmo tufo circular de cabelo ruivo, a mesma palidez. As feições, contudo, estavam transformadas por um sorriso horrível, um esgar fixo e pouco natural que naquele quarto silencioso e cheio de luar era extremamente perturbante. Um rosto tão parecido com o do nosso amigo, que olhei em volta para ver se ele ainda estava ali connosco. Lembrei-me então que Thaddeus e o irmão eram gémeos.
- Isto é terrível - disse a Holmes. - Que vamos fazer?
- Temos de arrombar a porta - respondeu, e, lançando-se contra ela, tentou forçar a fechadura.
Estalou, rangeu, mas não cedeu. Os dois, ao mesmo tempo, atirámo-nos novamente contra a porta. Desta vez abriu, repentinamente, e encontrámo-nos dentro do quarto de Bartholomew Sholto.
O quarto parecia um laboratório de química. Uma dupla fila de frascos com tampas de vidro estava encostada à parede oposta à porta, e sobre a mesa viam-se lamparinas, tubos de ensaio e retortas. Nos cantos havia garrafões de ácido dentro de cestos de vime. Um deles parecia estar partido, pois deixava escorrer um líquido escuro. No ar havia um cheiro forte, semelhante ao do alcatrão. Num dos lados da sala estava um escadote, no meio de um monte de ripas e estuque, e, por cima, havia um buraco no tecto suficientemente grande para um homem passar.
No chão, junto ao escadote, via-se um rolo de corda.
O dono da casa estava prostrado numa cadeira de braços, ao pé da mesa, com a cabeça caída sobre o ombro esquerdo e no rosto aquele sorriso horrível, inescrutável. Estava rígido e frio, sendo evidente que morrera há muitas horas. Pareceu-me que não só as suas feições como todos os membros estavam estranhamente retorcidos. Sobre a mesa, junto à sua mão, via-se um instrumento peculiar - uma bengala castanha com um cabo de pedra que parecia um martelo, rudemente envolvido por um entrançado grosseiro. Ao lado, um bocado de papel com algumas palavras rabiscadas. Holmes observou-o e mostrou-mo depois.
- Veja - disse, erguendo significativamente as sobrancelhas.
À luz da lanterna, li com um arrepio de horror:
O sinal dos quatro.
- Meu Deus, que significa tudo isto? - perguntei.
Significa assassínio - retorquiu inclinando sobre o homem morto. - Ali! Eu bem suspeitava. Veja isto!
Apontou para o que podia ser um espinho comprido e escuro espetado na pele por cima da orelha.
- Parece um espinho - afirmei.
- É um espinho. Pode tirá-lo. Mas tenha cuidado, pois está envenenado.
Agarrando-o entre o polegar e o indicador, puxei-o cuidadosamente. Saiu facilmente da pele, não deixando praticamente qualquer marca. Uma pequena gota de sangue apareceu no sítio da picada.
- Isto para mim é tudo um mistério insolúvel - disse eu. - Em vez de se esclarecer cada vez fica mais obscuro.
- Pelo contrário - respondeu Holmes -, cada vez se torna mais claro. Só preciso de encontrar mais alguns elos da cadeia para ter um caso perfeitamente coerente.
Quase que esquecêramos a presença do nosso companheiro desde que entrámos no quarto.
Estava ainda no limiar da porta, aterrorizado, a torcer as mãos, lamentando-se para si próprio. Subitamente, porém, começou a lamentar-se estridentemente:
- O tesouro desapareceu! Roubaram o tesouro! Ali está o buraco por onde o descemos. Eu ajudei-o a fazer isso! Fui a última pessoa que o viu! Deixei-o aqui na noite passada e quando descia as escadas ouvi-o fechar a porta.
- Que horas eram?
- Eram dez horas. E agora ele está morto, a polícia virá e suspeitarão de cumplicidade minha. Oh, sim, de certeza que vão suspeitar. Mas os senhores não acreditam nisso, pois não? Decerto que não acreditam que fui eu? Ia trazê-los cá se tivesse sido eu? Oh, valha-me Deus! Parece que vou enlouquecer!
Agitou os braços e bateu com os pés numa espécie de frenesim convulsivo.
- Não há motivo para recear, Sr. Sholto - disse Holmes amigavelmente, pondo-lhe a mão sobre o ombro. - Siga o meu conselho e vá até à esquadra participar o caso à polícia. Ofereça-se para os auxiliar no que for preciso. Esperaremos aqui até que volte.
O homenzinho obedeceu, meio estupefacto, e ouvimo-lo descer aos tropeções as escadas escuras.
Capítulo VI - Sherlock Holmes Faz Uma Demonstração
- Agora, Watson - disse Holmes, esfregando as mãos -, temos meia hora por nossa conta. Vamos usá-la bem. O caso, como lhe disse, está praticamente resolvido; mas não devemos ficar demasiado confiantes, o que nos poderia levar a errar. Ainda que o caso agora pareça muito simples, pode haver qualquer coisa mais complicada por detrás.
- Simples!? - exclamei.
- Com certeza - retorquiu, com um certo ar de professor de medicina fazendo uma exposição aos seus alunos. - Sente-se ali no canto, para que as suas pegadas não compliquem mais o caso. Agora, ao trabalho! Em primeiro lugar, como é que alguém entrou aqui e como saiu? A porta não foi aberta desde a noite passada. E a janela? – Levou a lanterna até junto da janela, fazendo em voz alta, mais para si próprio que para mim, as suas observações. - A janela está fechada pelo lado de dentro. O caixilho é sólido. Vamos abri-la. Nenhum algeroz perto. O telhado fora de alcance. No entanto, um homem subiu pela janela. Choveu um pouco na noite passada. Aqui está uma pegada de terra sobre o parapeito. E aqui uma marca circular de lama, e também aqui, no chão, e novamente aqui ao pé da mesa. Veja, Watson! Trata-se realmente de um precioso indício.
Olhei para os círculos de lama, redondos, bem definidos.
- Não são pegadas - observei.
- É algo com muito mais valor para nós: marcas de uma perna de pau. Pode ver aqui no parapeito a marca da bota, uma bota pesada com um grande protector de metal, e ao lado está a marca da perna de pau.
- É o homem da perna de pau!
- Exactamente. Mas havia mais alguém... um cúmplice muito habilidoso e eficiente. Conseguia escalar esta parede, doutor?
Olhei pela janela aberta. O luar brilhava ainda sobre aquela parte da casa. Estávamos a uns dezoito metros acima do chão, e, para onde quer que olhasse, não conseguia ver qualquer apoio para os pés, nem sequer uma fenda nos tijolos.
- É absolutamente impossível - respondi.
- Sem ajuda é impossível. Mas suponha que um amigo seu lhe lançava daqui de cima a grossa corda que está naquele canto, atando uma das pontas a este gancho na parede. Então, julgo que bastaria ter alguma força para subir, mesmo com uma perna de pau. Sairia, claro, da mesma maneira, e o seu cúmplice recolheria a corda, desprendê-la-ia do gancho, fecharia a janela por dentro e iria embora do mesmo modo como entrara. Podemos também verificar - prosseguiu, apalpando a corda - que o nosso amigo da perna de pau, embora fosse um bom trepador, não era um marinheiro profissional. Não tinha as mãos calejadas. A minha lupa revelou mais do que uma marca de sangue, especialmente junto à extremidade da corda, o que me leva a concluir ter ele escorregado com tal velocidade que arrancou a pele das mãos.
- Está tudo muito bem - retorqui -, mas assim o caso torna-se ainda mais incompreensível. Como entrou esse misterioso cúmplice no quarto?
- Sim, o cúmplice! - repetiu Holmes pensativamente. - Há aspectos interessantes acerca desse cúmplice. O facto de ele existir retira ao caso a sua banalidade. Creio que este cúmplice torna o caso inédito nos anais do crime neste país, embora tenha conhecimento de casos semelhantes na Índia e, se bem me recordo, na Senegâmbia.
- Como entrou ele, então? - perguntei novamente. - A porta estava fechada; a janela era inacessível. Veio pela chaminé?
- O tubo é muito pequeno - respondeu. - Já tinha pensado nessa possibilidade.
- Então, como foi? - insisti.
- Continua a não aplicar a minha regra - afirmou abanando a cabeça. - Quantas vezes já lhe disse que depois de eliminar o impossível, o que resta, ainda que muito improvável, será certamente a verdade? Sabemos que ele não entrou pela porta, pela janela ou pela chaminé. Sabemos também que não podia estar escondido no quarto, pois não tinha onde se esconder. Então, como entrou?
- Entrou pelo buraco no tecto! - exclamei.
- Exactamente. Decerto que foi isso. Se fizer o favor de segurar a lanterna, passaremos agora a investigar a sala de cima, a sala secreta onde foi encontrado o tesouro.
Subiu os degraus e, agarrando numa viga em cada mão, elevou-se até ao sótão. Depois, inclinando-se para baixo, pediu-me a lanterna e segurou-a enquanto eu subia.
A sala em que nos encontrávamos tinha cerca de três metros por dois. O chão era formado por vigas e estuque entre elas, de modo que ao caminhar tínhamos de saltar de umas para as outras. O tecto era inclinado e não havia dúvida de que se tratava do revestimento interior do telhado da casa. Não existia qualquer espécie de mobília, e a poeira acumulada durante anos formava uma espessa camada sobre o chão.
- Cá estamos - disse Sherlock Holmes, pondo a mão sobre a parede inclinada. - Há aqui um alçapão que dá para o telhado. Basta empurrá-lo para podermos ver o telhado ligeiramente inclinado. Foi então por aqui que o cúmplice entrou. Vamos ver se encontramos vestígios que nos forneçam indicações acerca da sua personalidade.
Aproximou a lanterna do chão e, ao fazê-lo, vi pela segunda vez nessa noite surgir-lhe sobre o rosto uma expressão de surpresa e perturbação. Pela minha parte, enquanto lhe seguia o olhar, senti gelar-se-me o sangue. O chão estava coberto de marcas de pés descalços - claras, bem definidas, perfeitamente formadas, mas com quase metade do tamanho das de um homem normal.
- Holmes - murmurei -, foi uma criança que fez esta coisa terrível?
Ele recuperara o autodomínio num instante.
- A princípio fiquei desconcertado - afirmou -, mas é tudo bastante natural. Falhou-me a memória, senão de certeza que previria isto. Nada mais temos a fazer aqui. Vamos para baixo.
- Qual é então a sua teoria acerca das pegadas? - perguntei ansiosamente, quando chegámos à sala de baixo.
- Meu caro Watson, tente você mesmo fazer uma análise - retorquiu, demonstrando um pouco de impaciência. - Conhece os meus métodos. Aplique-os, e será instrutivo compararmos os resultados.
- Não consigo imaginar coisa alguma que explique os factos - respondi.
- Em breve tudo se tornará claro para si - afirmou desprendidamente. - Creio já nada haver aqui que importe, no entanto vou verificar.
Tirou do bolso a lupa e uma fita métrica. Percorreu rapidamente a sala, de gatas, medindo, comparando, examinando, com o nariz, comprido e fino, apenas a alguns centímetros do soalho, e os olhos, pequenos, vivos e profundos, a brilhar como os de um pássaro. Os seus movimentos eram ágeis e silenciosos, como os de um cão de caça treinado. Não pude deixar de pensar que ele daria um terrível criminoso se empregasse a sua energia e sagacidade contra a lei e não a defendê-la. Enquanto fazia as suas investigações não parava de murmurar para si próprio e, por fim, soltou uma grande exclamação de alegria.
- Estamos com sorte - observou. - Agora tudo será mais fácil. O nosso suspeito teve a infelicidade de pisar o creosote. Pode ver aqui o contorno do pequeno pé, junto desta porcaria malcheirosa. O garrafão partiu-se e o líquido entornou-se.
- E então? - perguntei.
- Ora, quer dizer que o apanhámos - respondeu.
- Conheço um cão que seguiria este cheiro até ao fim do mundo. Se uma matilha consegue farejar a caça através do condado, não iria um cão especialmente treinado muito mais longe atrás de um cheiro tão intenso como este? Parece-me tão óbvio como uma regra de três simples. A solução será... Mas... creio que chegaram os representantes oficiais da lei.
Ouviam-se pesados passos e o clamor de vozes. No andar inferior a porta do vestíbulo bateu ruidosamente.
- Antes que cheguem - disse Holmes -, apalpe o braço e a perna deste desgraçado. Que sente?
- Os músculos estão tão rígidos que parecem de madeira - respondi.
- Exacto. Estão extremamente contraídos, excedendo muito o habitual rigor mortis. Tendo também em conta a distorção do rosto, este sorriso hipocrático, ou risus sardonicus, como o velho escritor lhe chama, que conclusão tira?
- Morte devida à acção de um forte alcalóide vegetal - respondi -, qualquer substância como a estricnina que provoca o tétano.
- Foi a ideia que me ocorreu quando vi os músculos contraídos do rosto. Ao entrar na sala procurei imediatamente saber de que modo o veneno penetrara no organismo. Como viu, descobri um espinho espetado pouco profundamente no couro cabeludo. A parte atingida foi a que ficaria voltada para o buraco do tecto se o homem estivesse sentado na cadeira. Agora examine este espinho.
Peguei-lhe cuidadosamente e observei-o sob a luz da lanterna. Era comprido, aguçado, negro. A ponta brilhava como se estivesse coberta de uma substância gomosa que secara. A extremidade aguçada fora aparada e afiada com uma faca.
- É um espinho inglês? - perguntou Holmes.
- Não, claro que não é.
- Com todos estes dados poderia chegar a uma conclusão. Mas aqui está a polícia, por isso as forças auxiliares devem bater em retirada.
Acabara de falar quando os passos, que se aproximavam cada vez mais, soaram ruidosamente no corredor. Um homem alto e entroncado, vestido com um fato cinzento, irrompeu bruscamente na sala. Tinha uma cara avermelhada, vigorosa, pictórica, e um par de olhos pequenos sempre a piscar e cheio de vivacidade entre as pálpebras inchadas. Atrás dele vinham um inspector fardado e o agitado Thaddeus Sholto.
- Lindo serviço! - exclamou o inspector com uma voz abafada e rouca. - Mas que lindo serviço! Quem é esta gente toda? Esta casa está tão cheia que parece uma coelheira.
- Creio que sabe quem sou, Sr. Athelney Jones - disse Holmes calmamente.
- Ora, claro que sei! - retorquiu com uma voz arquejante. - É o Sr. Sherlock Holmes, o teórico. Lembro-me bem de si! Nunca esquecerei a prelecção que nos fez sobre causas, inferências e efeitos, relativamente ao caso das jóias de Bishopgate. É verdade que nos pôs na pista certa; mas terá de admitir que foi mais uma questão de sorte que de boa orientação.
- Tratou-se de um raciocínio muito simples.
- Oh, vamos lá! Não se envergonhe de reconhecer a verdade. Mas que se passa aqui? Um caso sério! Os factos são evidentes, não há lugar para teorias. Que sorte eu estar aqui em Norwood a tratar de outro caso! Estava na esquadra quando a mensagem chegou. Qual pensa ter sido a causa da morte deste homem?
- Oh, trata-se de um caso acerca do qual não vale a pena eu teorizar - respondeu Holmes secamente.
- Não, não. Apesar de tudo, não podemos negar que você acerta de vez em quando. Meu Deus! A porta fechada, percebo. Jóias no valor de meio milhão desapareceram. Como estava a janela?
- Fechada; mas há pegadas no parapeito.
- Bem, bem, se estava fechada as pegadas nada têm a ver com o caso.
É evidente. O homem pode ter morrido com um ataque; mas as jóias desapareceram, Ah! Tenho uma teoria. Por vezes surgem-me estas ideias repentinas. Sargento, saia por um momento, e o Sr. Sholto também. O meu amigo pode ficar. Que pensa disto, Holmes? Segundo ele próprio confessou, Sholto esteve com o irmão ontem à noite. O irmão morreu com um ataque, aproveitando Sholto para levar o tesouro? Que tal?
- E depois o morto levantou-se discretamente e fechou a janela por dentro.
- Hum! Há aí uma falha. Vamos usar o senso comum.
Sabemos que Thaddeus Sholto esteve com o irmão e que houve uma discussão. O irmão morreu e as jóias desapareceram. Também sabemos isso. Ninguém viu o irmão desde que Thaddeus o deixou. A sua cama não foi desmanchada. Thaddeus está obviamente muito perturbado. Tem um ar... digamos, pouco agradável. Como vê estou a tecer a minha teia à volta de Thaddeus. E as malhas começam a apertar-se sobre ele.
- Ainda não tem conhecimento de todos os factos disse Holmes. - Esta lasca de madeira, acerca da qual tenho todas as razões para julgar envenenada, estava espetada no couro cabeludo do homem. Ainda pode ver a marca. Encontrámos este papel escrito sobre a mesa, ao lado deste curioso instrumento com cabo de pedra. Que lugar ocupa tudo isto na sua teoria?
- Confirma-a sob todos os aspectos - respondeu o gordo detective pomposamente. - A casa está cheia de curiosidades indianas. Thaddeus trouxe isto para cima. Quanto à lasca de madeira envenenada, Thaddeus podia tê-la usado, como qualquer outra pessoa, com intuitos criminosos. O papel é um truque. Só falta saber como ele saiu. Ah, claro, aqui está o buraco no tecto.
Com grande energia, apesar da sua corpulência, subiu os degraus e entrou para o sótão.
Imediatamente a seguir ouvimo-lo exclamar alegremente que encontrara o alçapão.
Imediatamente a seguir ouvimo-lo exclamar alegremente que encontrara o alçapão.
- Conseguiu encontrar qualquer coisa - observou Holmes, encolhendo os ombros. - Tem ocasionais lampejos de inteligência. Il ny a pas des sois si incommodes que ceux qui ont de l’esprit! (Os tolos mais incómodos são os espertos.)
- Vê! - disse Athelney Jones quando reapareceu, descendo as escadas -, apesar de tudo, os factos valem mais que as teorias. A minha ideia sobre o caso está confirmada. Há um alçapão que comunica com o telhado e está parcialmente aberto.
- Fui eu que o abri.
- Ai sim! Já o tinha visto, então? - Parecia um pouco desanimado com a descoberta. - Bem, não interessa quem o encontrou, mas sim que foi por ali que o nosso homem escapou. Inspector!
- Sim, senhor - ouviu-se dizer do corredor.
- Peça ao Sr. Sholto para entrar; Sr. Sholto, é meu dever informá-lo que tudo o que disser pode ser usado contra si. Tenho de o prender por estar envolvido na morte do seu irmão.
- Ora esta! Eu não lhes disse!? - exclamou o pobre homenzinho, abrindo os braços e olhando sucessivamente para cada um de nós.
- Não se preocupe, Sr. Sholto - disse Holmes. - Creio que posso ilibá-lo da acusação.
- Não prometa de mais, Sr. Teórico! Não prometa de mais! - retorquiu o detective com brusquidão. - Pode ser que o caso seja mais difícil do que pensa.
- Não só o ilibarei, Sr. Jones, como lhe darei a si o nome e a descrição de uma das duas pessoas que estiveram neste quarto ontem à noite. O nome, tenho razões para afirmá-lo, é Jonathan Small. Trata-se de um homem pouco instruído, baixo, enérgico, sem a perna direita e com uma perna de pau já gasta do lado de dentro. A bota esquerda tem uma sola grossa com a biqueira quadrada e um protector metálico no salto.
É um homem de meia-idade, bastante queimado pelo sol, e já esteve preso. Estas indicações poderão auxiliá-lo, acrescidas do facto de que na palma da mão desse homem falta um bom bocado de pele. O outro homem...
- Ah! O outro homem?' - inquiriu Athelney Jones sarcasticamente, mas apesar de tudo impressionado com a precisão das informações.
- É uma pessoa bastante curiosa prosseguiu Sherlock Holmes, rodando sobre os calcanhares. - Espero poder em breve apresentar-lhe os dois. Queria falar consigo, Watson.
Saindo do quarto, levou-me até ao topo das escadas e disse:
- Esta ocorrência inesperada fez com que perdêssemos de vista o objectivo inicial da nossa viagem.
- Estava exactamente a pensar nisso - retorqui. - Não conveniente que a Menina Morstan permaneça por mais tempo nesta casa.
- Não. É seu dever acompanhá-la. Ela vive em casa da Sr.ª Cecil Forrester em Lower Camberwell. Não é muito longe. Espero aqui por si, se quiser voltar. Mas talvez esteja muito cansado?
- De maneira nenhuma. Creio que não conseguirei descansar enquanto não se esclarecer este fantástico caso. Tenho alguma experiência das adversidades da vida, mas confesso-lhe que a rápida sequência de estranhas surpresas desta noite me arrasou completamente os nervos. Gostaria, contudo, de o acompanhar neste caso, já que cheguei até aqui.
- Prestar-me-á um grande serviço se estiver presente - disse ele. - Resolveremos o caso por nós próprios e deixaremos o nosso amigo Jones regozijar-se com as falsas explicações que bem entenda arquitectar. Depois de deixar a Menina Morstan em casa, queria que fosse ao n.º 3 de Pinchin Lane, em Lambeth, perto da margem do rio. A terceira casa do lado direito é de um empalhador de animais. Chama-se Sherman. Verá uma doninha e um coelho na montra.
Acorde o velho Sherman e diga-lhe, com os meus cumprimentos, que preciso urgentemente do Toby. Trará oToby para aqui na carruagem.
- Um cão, suponho.
- Sim, um animal singular com um olfacto extraordinário. Prefiro a ajuda do Toby à de todos os detectives de Londres.
- Então eu trago-o - prometi. - É uma hora. Se arranjar um cavalo fresco devo estar de volta antes das três.
- E eu - disse Holmes - vou interrogar a Sr.ª Bernstone e o criado indiano que, segundo me informou o Sr. Thaddeus, dorme no quarto ao lado. Depois estudarei os métodos do admirável Jones e escutarei os seus sarcasmos pouco delicados.
Wir sind gewohnt dass die Menschen verhohnen was sie nicht verstehen
Tradução: Vemos muitas vezes os homens troçar daquilo que não compreendem
- Goethe é sempre muito conciso.
Capítulo VII – O Episódio do Barril
A polícia trouxera uma carruagem na qual acompanhei a Menina Morstan a casa. Angelicamente, como é hábito nas mulheres, suportaria tudo com tranquilidade enquanto alguém mais fraco necessitasse de apoio, e encontrei-a animada e serena junto da assustada governanta. Na carruagem, porém, esmoreceu e desatou depois a chorar convulsivamente - pois fora duramente posta à prova pelas aventuras daquela noite. Disse-me posteriormente que me achara frio e distante durante a viagem. Nem sequer suspeitou da luta que se travava dentro de mim, nem do esforço que fazia para me conter. A minha simpatia e o meu amor fluíam para ela tão intensamente como quando déramos as mãos no jardim. Senti que anos e anos de convenções sociais, comparados com aquele dia tão cheio de experiências estranhas, não me fariam conhecer melhor a sua natureza dócil e corajosa. Dois pensamentos, contudo, impediam-me de pronunciar as palavras de afecto que me vinham aos lábios. Ela sentia-se fraca e desamparada, o seu espírito estava perturbado. Impor-lhe o meu amor naquela altura seria aproveitar-me da sua situação de inferioridade. E, pior ainda, ela era rica. Se as investigações de Holmes fossem bem-sucedidas, herdaria uma fortuna. Seria justo, seria honesto, que um cirurgião, inactivo como eu, tirasse tal partido de uma intimidade que era fruto do acaso? Não me passaria ela a considerar um mero caçador de fortunas? Não conseguia suportar a ideia de que tal pensamento lhe ocorresse. O tesouro de Agra transformara-se numa barreira intransponível que nos separava.
Eram quase duas horas quando chegámos a casa da Sr.ª Forrester. Os criados já estavam deitados havia horas, mas a Sr.ª Forrester ficara tão interessada pelo caso da Menina Morstan que permanecera acordada e esperava o seu regresso.
Ela própria abriu a porta. Era uma mulher de meia-idade, graciosa, e causou-me alegria a ternura com que pôs o braço à roda da cintura da outra e a voz maternal com que a saudou. Era evidente que não a considerava uma simples empregada, mas uma boa amiga. Fui apresentado. A Sr.ª Forrester convidou-me a entrar para que lhe contasse as nossas aventuras. Expliquei, porém, a importância da missão de que fora incumbido e prometi sinceramente comunicar qualquer novidade que surgisse nas nossas investigações. Quando a carruagem já se afastava olhei para trás, e parece que ainda vejo aquela cena - duas figuras graciosas à entrada de casa, a porta entreaberta, a luz do vestíbulo através da vidraça colorida, o barómetro e os varões brilhantes da passadeira. Era um vislumbre reconfortante, ainda que rápido, de um tranquilo lar inglês no meio da história cruel e deprimente em que nos víramos envolvidos.
E quanto mais pensava em tudo o que acontecera mais me parecia cruel e deprimente. Revi toda aquela extraordinária sequência de acontecimentos enquanto seguia pelas silenciosas ruas iluminadas a gás. O problema inicial estava agora completamente esclarecido. A morte do capitão Morstan, o envio das pérolas, o anúncio, a carta - fôramos elucidados acerca desses acontecimentos que, no entanto, apenas tinham conduzido a um mais profundo e trágico mistério. O tesouro indiano, o curioso mapa descoberto na bagagem de Morstan, a estranha cena na altura da morte do major Sholto, a redes coberta do tesouro imediatamente seguida pelo assassínio do descobridor as singulares circunstâncias do crime, as pegadas, as armas peculiares, as palavras sobre o papel correspondendo às inscritas sobre o mapa do capitão Morstan - aqui estava, na verdade, um labirinto complexo.
Qualquer pessoa menos singularmente dotada que o meu companheiro decerto que desesperaria na busca de pistas.
Pinchin Lane era um arruamento de casas de tijolo com dois andares, na parte baixa de Lambeth. Tive de bater durante bastante tempo no n.º 3 até ser ouvido. Por fim, vi o tremeluzir de uma vela atrás da preciana, e um rosto espreitou pela janela de cima.
- Vá embora, seu bêbedo vadio - disse o homem. - Se continua a fazer barulho, abro o canil e largo quarenta e três cães atrás de si.
- Deixe sair só um, pois foi por isso que cá vim retorqui.
- Vá embora! - gritou ele. - Tenho um cacete aqui neste saco e leva com ele na cabeça se não se põe a andar!
- Mas eu vim buscar um cão - insisti.
- Não quero discutir consigo! - gritou novamente o Sr. Sherman. - Agora desapareça; vou contar até três e depois lá vai o cacete.
- O Sr. Sherlock Holmes... - comecei por dizer; mas estas palavras tiveram um efeito mágico, pois a janela fechou-se imediatamente e, passado um minuto, a porta abriu-se. O Sr. Sherman era um velhote alto e magro, com as costas curvadas, o pescoço enrugado e uns óculos azulados.
- Um amigo de Sherlock Holmes é sempre bem-vindo - afirmou o velhote. - Entre, senhor. Não se aproxime do texugo, que ele morde. Ah, malvado, eras capaz de morder neste senhor? - falava agora para um arminho de focinho pontiagudo que espreitava com os seus olhos vermelhos por entre as grades da gaiola. - Essa não faz mal, senhor; é uma anguinha. Não tem dentes, por isso deixo-a andar à solta para afugentar as baratas. Desculpe ter-lhe respondido mal há bocado, mas é que os rapazes costumam meter-se comigo e às vezes vêm cá para me acordar. Que queria o Sr. Sherlock Holmes?
- Um dos seus cães.
- Ah!, deve ser o Toby.
- Sim, é o Toby.
- Está no n.º 7, aqui à esquerda.
Avançou lentamente, com a vela na mão, por entre a estranha família de animais que ali reunira à sua volta.
Naquela luz bruxuleante, entre as sombras, vislumbrava olhos brilhantes a espreitar-nos de todos os cantos. Até nas vigas do tecto estavam aves solenes que mudavam de uma pata para a outra o suporte do seu peso quando as nossas vozes lhes interrompiam a sonolência.
Toby era um animal feio, de pêlo comprido e orelhas pendentes, sem raça definida, castanho e branco, com uma maneira de andar desajeitada, bamboleante. Aceitou, depois de certa hesitação, o torrão de açúcar que o velho naturalista me estendera, e, tendo nós deste modo celebrado um acordo, seguiu-me até à carruagem sem criar problemas pelo facto de me acompanhar. Tinham acabado de soar as três no relógio do palácio quando cheguei novamente a Pondicherry Lodge. Vim a saber que o ex-campeão de pugilismo McMurdo fora também preso, e tanto ele como o Sr. Sholto tinham sido levados para a esquadra. Dois polícias guardavam o estreito portão, mas deixaram-me entrar com o cão depois de eu mencionar o nome do detective.
Holmes estava no limiar da porta, com as mãos nos bolsos, a fumar o seu cachimbo.
- Ah, trouxe-o consigo! - exclamou. - Então, meu bom cão! Athelney Jones foi-se embora. Assistimos a um enorme dispêndio de energia desde que você saiu. Ele prendeu não só o nosso amigo Thaddeus, mas também o guarda-portão, a governanta e o criado indiano. Além do sargento lá em cima, agora estamos só nós em casa. Deixe aqui o cão e suba.
Prendemos Toby a uma mesa, no vestíbulo, e subimos as escadas. O quarto estava como o deixáramos, mas o cadáver fora coberto com um lençol. A um canto estava um sargento da polícia com ar cansado.
- Empreste-me a sua lanterna, sargento - pediu o meu companheiro. - Agora prenda-me este fio à volta do pescoço para a pendurar à minha frente. Obrigado. Vou tirar as botas e as meias. Leve-as para baixo, Watson. Vou fazer uma pequena escalada. E embeba o meu lenço no creosote. Chega. Agora, antes de descer, venha comigo ao sótão.
Trepámos através do buraco. Holmes fez incidir a luz mais uma vez sobre as pegadas na poeira.
- Observe estas pegadas com atenção - disse ele. - Nota alguma coisa de especial?
- Pertencem - respondi. - a uma criança ou a uma mulher pequena.
- Para além do tamanho. Não observa nada mais?
- Parecem absolutamente normais.
- Mas não são. Olhe! Aqui está a marca de um pé direito sobre a poeira. Agora vou fazer uma ao lado com o meu pé descalço. Qual é a principal diferença entre elas?
- Os dedos do seu pé estão todos unidos. A outra pegada tem cada dedo distintamente separado dos outros.
- Exactamente. É isso mesmo. Fixe na memória este pormenor. Agora, não se importa de ir até junto do alçapão e cheirar na beira da armação de madeira? Fico aqui, pois tenho este lenço na mão.
Fiz como ele dizia e senti imediatamente um forte cheiro a alcatrão.
- Foi aí que ele pôs o pé quando saiu. Se você conseguiu detectar o cheiro, julgo que Toby não terá qualquer dificuldade.
Agora corra para baixo, desprenda o cão e vá lá para fora ver as minhas acrobacias.
Quando cheguei aos terrenos que rodeavam a casa vi Sherlock Holmes em cima do telhado. Parecia uma enorme anguinha a rastejar muito lentamente sobre as telhas. Perdi-o de vista quando passou atrás de um grupo de chaminés, mas depois reapareceu e, mais uma vez, desapareceu do outro lado do telhado.
Dei a volta à casa e fui encontrá-lo sentado sobre o algeroz num dos cantos do telhado.
- Você está aí, Watson? - gritou.
- Estou.
- É este o sítio. Que é essa coisa preta aí em baixo?
- Um barril para a água.
- Está tapado?
- Sim.
- Há alguma escada?
- Não.
- Livra!. É o sítio ideal para partir o pescoço. Devo ser capaz de descer por onde ele subiu. O barril parece bastante firme. Bem, cá vou eu.
Ouviu-se o ruído dos pés a arrastar sobre o algeroz. A lanterna começou a descer lentamente junto à parede. por fim, Sherlock Holmes deu um pequeno salto para cima do barril, pulando depois para o chão.
- Foi fácil seguir-lhe o rasto - observou, ao mesmo tempo que enfiava as meias e as botas. - As telhas estavam deslocadas nos sítios por onde ele passou. Com a pressa deixou cair isto. Confirma o meu diagnóstico, como vocês, médicos, costumam dizer.
O objecto que ele me estendia era uma pequena bolsa, tecida com palha colorida e enfeitada com algumas contas sem valor presas à volta. A forma e o tamanho faziam lembrar uma cigarreira. Dentro havia meia dúzia de espinhos de madeira escura, cada um deles com uma ponta afiada e a outra arredondada, semelhantes àquele que atingira Bartholomew Sholto.
- Estas coisas são diabólicas - disse Holmes. - Tenha cuidado para não se picar. Estou mais descansado por ter estes espinhos comigo, porque provavelmente são os únicos que ele possuía. Não temeremos tanto vir a encontrar um espetado na nossa pele. Eu cá preferia levar um tiro. Está pronto para uma caminhada de dez quilómetros, Watson?
- Claro - respondi.
- A sua perna aguenta?
- Oh, sim.
- Anda cá, cachorro! Meu bom Toby! Cheira, Toby, cheira! - Pôs o lenço com creosote sob o focinho do cão.
O animal, com as pernas felpudas afastadas e a cabeça comicamente inclinada, parecia um provador de vinhos a apreciar o aroma de uma colheita famosa. Holmes atirou depois o lenço para longe, prendeu uma trela à coleira do cão e levou-o para junto do barril de água. O animal desatou logo a ganir estridentemente e, com o focinho rente ao chão, começou a seguir o rasto a tal velocidade que a trela ficou tensa e nós mal o conseguíamos acompanhar.
A levante, o céu clareava lentamente. A luz fria e cinzenta permitia-nos agora ver até uma certa distância. A casa, maciça e quadrada, com as suas janelas escuras, vazias, e altas paredes nuas, erguia-se atrás de nós, triste e abandonada. Atravessámos os terrenos em frente da casa, passando pelas valas e buracos que os sulcavam e entrecortavam. Aquele lugar, cheio de montes de terra e estranhos arbustos, possuía uma atmosfera maléfica que condizia com a tragédia sinistra que sobre ele se abatera.
Ao chegar ao muro que rodeava a propriedade, Tobypercorreu-o, ganindo ansiosamente, e parou depois num canto tapado por uma pequena faia. No sítio onde o muro formava um ângulo havia várias fendas entre os tijolos, que se apresentavam gastos como se já tivessem sido usados muitas vezes como escada. Holmes empoleirou-se no muro e, pegando no cão, fê-lo saltar para o outro lado.
- Aqui está a marca da mão do homem da perna de pau – observou enquanto eu subia. - Veja esta ligeira mancha de sangue sobre a argamassa branca. Que sorte não ter chovido muito desde ontem! De certeza que o cheiro se conservou sobre a estrada, apesar de já terem passado vinte e oito horas.
Confesso que tive algumas dúvidas acerca disso quando pensei no imenso tráfego que passara pela estrada de Londres naquele lapso de tempo.
O meu receio, porém, cedo se desvaneceu. Toby nunca hesitou ou se desviou, continuando a sua peculiar marcha bamboleante. Era evidente que o forte cheiro a creosote superava todos os outros.
- Não julgue - disse Holmes - que o meu sucesso neste caso depende apenas do mero acaso de um destes tipos ter posto o pé no creosote. Possuo dados, neste momento, que me possibilitariam seguir-lhes a pista de diferentes maneiras. Esta, no entanto, é a mais rápida, e, dado que a sorte a pôs à nossa disposição, sentir-me-ia culpado se a desprezasse. O caso, porém, não chegou a transformar-se no curioso problemazinho intelectual que a princípio prometia ser. Haveria algum mérito na sua resolução se não tivéssemos esta pista demasiado palpável.
- Mas há mérito, e de sobra - retorqui. - Pode ter a certeza, Holmes, que fiquei mais admirado com os seus métodos neste caso que por altura do assassínio de Jefferson Hope. Parece-me tudo mais intrincado e inexplicável. Como conseguiu, por exemplo, descrever com tanta segurança o homem da perna de pau?
- Ora, meu menino!, nada mais simples! Mas não quero vangloriar-me. É tudo muito evidente. Dois oficiais que comandam uma guarda prisional descobrem um segredo importante acerca de um tesouro enterrado. Um inglês, chamado Jonathan Small, desenha um mapa para eles. Lembra-se que vimos este nome no mapa que estava na posse do capitão Morstan. Assinara em seu nome e no dos seus sócios «o sinal dos quatro», tal foi a designação, um pouco dramática, que usou. Auxiliados por esse mapa, os oficiais, ou um deles, descobre o tesouro e trá-lo para Inglaterra, não satisfazendo, suponhamos, qualquer compromisso sob o qual o recebera. E por que não foi o próprio Jonathan Small buscar o tesouro? A resposta é óbvia.
O mapa data da altura em que Morstan exercia as suas funções junto de condenados. Jonathan Small não foi buscar o tesouro porque, tanto ele como os seus sócios, eram condenados e não podiam sair da prisão.
- Mas trata-se de mera especulação... - comentei.
- É mais do que isso. É a única hipótese que condiz com os factos. Vejamos a sequência dos acontecimentos. O major Sholto fica tranquilo durante alguns anos, satisfeito com a posse do seu tesouro. Depois recebe uma carta da Índia que o aterroriza. Que carta seria?
- Uma carta a dizer que o homem que ele tinha enganado fora libertado.
- Ou se evadira, o que é mais verosímil, pois Sholto devia conhecer a duração da pena. De outro modo não ficaria surpreendido. E que faz ele então? Tenta proteger-se do homem da perna de pau, um homem branco, repare, pois chegou a confundi-lo com um comerciante branco sobre o qual disparou um tiro de pistola. Mas no mapa só há um nome de homem branco. Os outros são hindus ou maometanos. Não há mais nenhum homem branco. Podemos, assim, afirmar com segurança que o homem da perna de pau é Jonathan Small. Acha o meu raciocínio incorrecto?
- Não. É claro e conciso.
- Bem, vamos agora pôr-nos no lugar de Jonathan Small. Consideremos o seu ponto de vista. Ao regressar a Inglaterra pretende recuperar aquilo a que julga ter direito e vingar-se do homem que o enganara. Descobriu onde Sholto morava e muito provavelmente entrou em contacto com alguém da casa. Há um mordomo, Lal Rao, que não chegámos a ver. A Sr.ª Bernstone não lhe atribui muito bom carácter. Small não conseguiu descobrir, contudo, onde estava escondido o tesouro, pois ninguém o sabia a não ser o major e um criado leal que falecera. Um dia, Small vem a saber que o major está a morrer.
Para que o segredo acerca do tesouro não morresse com ele, dirige-se precipitadamente para a casa, consegue ultrapassar os guardas e chega à janela do homem moribundo. A única coisa que o impede de entrar é a presença dos dois filhos. Nessa mesma noite, porém, desvairado com o ódio que nutria pelo homem morto, entra no quarto e revista-o, esperando descobrir, entre os seus documentos pessoais, qualquer indicação relacionada com o tesouro. Depois deixa um sinal da sua visita: a breve frase escrita sobre o papel. Sem dúvida que planeara isso antecipadamente. Se tivesse morto o major, deixaria qualquer sinal sobre o corpo, indicando não se tratar de um assassínio comum mas de um acto de justiça, segundo o ponto de vista dos quatro cúmplices. Este tipo de conceitos bizarros são bastante comuns nos anais do crime e fornecem normalmente indicações valiosas sobre o criminoso. Está a seguir tudo isto?
- Perfeitamente.
- Que podia agora fazer Jonathan Small? Apenas continuar a vigiar secretamente as tentativas feitas para encontrar o tesouro. É possível que tenha saído de Inglaterra, voltando de tempos a tempos. Depois surge a descoberta do sotão, sendo ele imediatamente informado do facto. Continuamos a detectar a presença de um cúmplice dentro de casa. Jonathan, com a sua perna de pau, é absolutamente incapaz de subir até ao quarto de Bartholomew Sholto. Traz consigo, porém, um cúmplice bastante curioso que ultrapassa essa dificuldade, mas que põe o pé descalço sobre o creosote. Daí a presença de Toby e esta viagem de dez quilómetros a coxear feita por um oficial inactivo com o tendão de Aquiles ferido.
- Mas foi o cúmplice, e não Jonathan, quem cometeu o crime.
- Exactamente. E contra a vontade de Jonathan, a julgar pelas marcas que deixou à volta do corpo quando esteve no quarto.
Não odiava Bartholomew Sholto e teria preferido que fosse apenas amarrado e amordaçado. Não queria matá-lo. Mas não havia nada a fazer: os instintos selvagens do seu companheiro haviam-se manifestado, e o veneno actuara. Jonathan Small deixou então o seu sinal, desceu o cofre do tesouro e saiu, ele também, pela janela. Foi esta a sequência dos acontecimentos tanto quanto consigo decifrá-los. Em relação ao aspecto do homem, claro que deve ser de meia-idade e estar tostado pelo sol depois de ter cumprido a sua pena no forno que é Andamão. A sua altura pode ser facilmente calculada a partir do comprimento da passada. Sabemos que tinha barba. A calvície foi o que mais impressionou Thaddeus Sholto quando o viu na janela. Creio que é tudo.
- E o cúmplice?
- Ah, bem, não é um grande mistério. Mas em breve saberá tudo. Como é agradável o ar da manhã! Olhe aquela nuvenzinha que flutua no ar: parece a plumagem cor-de-rosa de um flamingo, gigante. O círculo vermelho do Sol começa a aparecer sobre as nuvens de Londres. Ilumina muita gente, mas ninguém, aposto, que esteja numa situação mais estranha que a nossa. Como nos sentimos pequenos, com as nossas ambições e rivalidades insignificantes, perante as poderosas forças da Natureza! Como vai o seu Jean Paul?
- Bastante bem. Regressei a ele através de Carlyle.
- Isso foi como subir um regato até ao lago original. Ele faz uma observação curiosa e profunda. Afirma que a maior prova da verdadeira grandeza do Homem reside na percepção da sua própria pequenez. Defende, como vê, a existência de uma capacidade de comparação e apreciação que é, em si mesma, uma prova de nobreza. Richter fornece-nos muitos motivos de reflexão. Não tem uma pistola, pois não?
- Tenho a minha bengala.
- É muito possível que precisemos de qualquer coisa desse género se chegarmos a encontrar o covil deles. Deixá-lo-ei ocupar-se de Jonathan, mas se o outro se mostrar agressivo terei de abatê-lo com um tiro de pistola.
Tirou o revólver e, depois de carregar duas câmaras, voltou a guardá-lo no bolso direito do colete.
Continuáramos, entretanto, a seguir Toby, descendo em direcção à cidade pelas estradas ladeadas de casas semi-rurais. Começámos depois a encontrar ruas de edifícios contíguos, onde operários e trabalhadores das docas estavam já em actividade, e mulheres com aspecto desmazelado iam tirando taipais e esfregando as entradas das portas. Nas esquinas dos quarteirões as tabernas começavam o negócio. De lá saiam homens com aspecto rude, a limpar a barba com a manga depois de terem molhado a goela logo pela manhã. Cães estranhos deambulavam por ali e ficavam a olhar-nos com perplexidade quando passávamos, mas o nosso inimitávelToby nem olhava para a esquerda nem para a direita. Seguia em frente com o focinho rente ao chão e soltava por vezes um latido ansioso que traduzia um acentuar do odor.
Atravessámos Streathan, Brixton, Camberwell, e atingimos depois Kennington Lane, tendo percorrido rapidamente as ruas secundárias a leste da Oval. Os homens que perseguíamos pareciam ter feito um curioso percurso em ziguezague, pensando talvez escapar assim a qualquer observação. Tinham abandonado a estrada principal, sempre que fora possível seguir por uma rua secundária paralela. Em Kennington Lane voltaram à esquerda para Bond Street e Miles Street. Onde esta última rua vira para Knight's Place,Toby deteve-se, começando a correr para trás e para a frente com uma orelha erguida e a outra pendente. Era a imagem exacta da indecisão canina.
Depois pôs-se a andar em círculos, olhando para nós de vez em quando como se pedisse desculpa pelo seu embaraço.
- Que diabo tem o cão? - resmungou Holmes. - Com certeza que eles não apanharam uma carruagem nem levantaram voo num balão.
- Talvez tenham parado aqui durante algum tempo sugeri.
- Ali!, está bem. Lá vai ele outra vez - disse o meu companheiro num tom de alívio.
Lá ia ele. Após farejar mais uma vez ali à volta, o cão decidira-se e partira com maior energia e determinação que anteriormente. O cheiro parecia ter-se intensificado, pois o animal nem sequer precisava de pôr o nariz no chão e puxava violentamente a trela, tentando correr. Compreendi, pelo brilho dos seus olhos, que Holmes pensava estarmos próximo do fim da nossa viagem.
Descemos então Nine Elms até alcançarmos Broderick e um grande depósito de madeira logo a seguir à estalagem White Eagle. O cão, muito excitado, entrou pelo portão para dentro do recinto onde os serradores já trabalhavam. Continuou a correr através de serradura e aparas de madeira, desceu por uma pequena rua, virou para uma passagem entre duas pilhas de madeira e, por fim, com um ganido triunfante, pôs as patas da frente sobre um grande barril que ainda estava em cima do carrinho de mão em que fora transportado. Com a língua de fora e os olhos brilhantes,Toby ficou com as patas sobre o casco do barril, a olhar para nós, à espera de alguma manifestação de reconhecimento. As aduelas do barril e as rodas do carro estavam manchadas por um líquido escuro, e no ar havia um forte cheiro a creosote.
Sherlock Holmes e eu olhámos desconsoladamente um para o outro e desatámos depois a rir ao mesmo tempo.
Capítulo VIII – O Bando de Baker Street
- E agora? - perguntei. - Toby deixou de ser infalível.
- Limitou-se a seguir o seu olfacto - disse Holmes fazendo-o largar o barril e levando-o para fora do depósito de madeira. - Se considerar a quantidade de creosote transportada através de Londres num dia, não admira que o nosso rasto se tenha cruzado com outro. É um produto muito usado, especialmente no tratamento de madeira. O pobre Toby não tem culpa.
- Temos então outra vez de encontrar a pista que interessa.
- Sim. E, felizmente, não é preciso ir muito longe. É evidente que o que confundiu o cão na esquina de Knight's Place foi a existência de dois rastos em direcções diferentes. Seguimos o errado. Resta agora seguir o outro.
Não foi difícil. Quando conduzimos Toby ao local onde se enganara, descreveu um longo círculo e, por fim, partiu na nova direcção.
- Vamos lá ver se ele não nos leva ao sítio donde veio o barril de creosote - observei.
- Já pensei nisso. Mas veja que ele segue pelo passeio, e o barril foi transportado pela estrada. Não, agora estamos na pista certa.
Toby dirigiu-se para a margem do rio, passando por Belmont Place e Prince's Street. No fim de Broad Street correu para um pequeno embarcadouro de madeira junto ao rio. Quando alcançou a extremidade do embarcadouro, parou e começou a ganir, ficando a olhar para as águas escuras.
- Estamos com pouca sorte - disse Holmes. - Apanharam aqui um barco.
Alguns barcos a remos flutuavam presos ao embarcadouro. Andámos com Toby à volta de cada um deles. Farejou intensamente, mas nada descobriu.
Junto do tosco cais havia uma pequena casa de tijolos com uma tabuleta suspensa atrás do vidro da janela.
Sobre ela estava escrito em grandes letras: «Mordecai Smith» e, por baixo, «Alugam-se barcos à hora ou ao dia». Uma segunda inscrição, por cima da porta, informava-nos da existência de uma lancha a vapor - o que era confirmado por uma grande pilha de carvão sobre o embarcadouro. Sherlock Holmes olhou em volta, lentamente, e o seu rosto adquiriu uma expressão agoirenta.
- Isto está mau - comentou. - Estes tipos são mais espertos do que eu pensava. Parece que não deixaram rasto. Suspeito que aqui tenha havido um estratagema qualquer combinado antecipadamente.
Aproximava-se da porta da casa quando esta se abriu.
Um rapazito de seis anos, com o cabelo encaracolado, saiu a correr, seguido por uma mulher forte e corada que trazia uma grande esponja na mão.
- Anda cá lavar-te, Jack - gritou a mulher. - Anda cá, meu diabrete! Se o teu pai volta para casa e te vê assim vamos ter de ouvi-lo.
- Ó querido rapazinho - disse Holmes, estrategicamente. - Mas que malandro de bochechas coradas! Bem, Jack, que queres que eu te dê?
O pequeno pensou durante um momento.
- Quero um xelim - respondeu.
- Não preferes outra coisa qualquer?
- Prefiro dois xelins - retorquiu o prodígio, depois de reflectir um pouco.
- Aqui os tens então! Toma! Que miúdo esperto, Sr.ª Smith!
- Valha-me Deus, senhor, ele é esperto e muito mais que isso. Dá-me cá um trabalho, principalmente quando o meu homem fica fora vários dias seguidos.
- Ele não está cá? - perguntou Holmes, desapontado.
- É pena, pois queria falar com o Sr. Smith.
- Está fora desde ontem de manhã, senhor, e, para dizer a verdade, já estou assustada por causa dele. Mas, se quer um barco, talvez eu possa tratar disso.
- Queria alugar a lancha a vapor.
- Ora valha-me Deus, foi mesmo na lancha a vapor que ele saiu.
É isso que me intriga; sei que só levava carvão para chegar mais ou menos até Woolwich e voltar. Se tivesse ido na barca, eu não estranharia; muitas vezes o trabalho leva-o para longe, até Gravesend, e então, se houvesse muito que fazer, podia ter dormido lá. Mas uma lancha a vapor sem carvão não vai a lado nenhum.
Podia ter comprado algum noutro embarcadouro...
- Podia, sim senhor, mas não ia fazer isso. Ouviu-o muitas vezes protestar contra os preços que cobram por meia dúzia de sacos. Além disso, não gosto daquele homem com a perna de pau, mal-encarado e com uma maneira de falar esquisita. Não sei o que queria quando andava aqui sempre a bater à porta.
- Um homem com uma perna de pau? - inquiriu Holmes, mostrando-se surpreendido.
- Sim, senhor, um homem escuro com cara de poucos amigos que veio aqui à procura do meu homem mais que uma vez. Foi ele quem o acordou ontem de madrugada, e o meu homem sabia que ele vinha, porque tinha preparado a lancha. Digo-lhe sinceramente, senhor, estou assustada com isto.
- Mas, Sr.ª Smith - disse Holmes, encolhendo os ombros -, não tem motivo para se preocupar. Como sabe que foi o homem da perna de pau que veio ontem à noite? Não percebo como pode estar tão certa disso.
- A voz dele, senhor. Conheço bem aquela voz grossa e abafada. O homem bateu à janela... aí pelas três da manhã. «Levanta-te da cama, camarada», disse ele, «são horas de acordar.» O meu homem acordou Jim - é o meu mais velho - e lá foram sem dizer palavra. Pude ouvir o barulho que fazia a perna de pau a bater na pedra.
- E esse homem da perna de pau vinha sozinho?
- Isso não sei, senhor. Não ouvi mais ninguém.
- Bem, Sr.ª Smith, eu queria uma lancha a vapor e ouvi falar muito bem acerca da...
Deixe-me ver, qual é o nome da lancha?
- Aurora, senhor.
- Ah! Não é aquela velha lancha larga, verde com risca amarela?
- Não, não é. É uma coisa pequena, mas das melhores que há aí no rio. Foi pintada há pouco tempo: preta com duas riscas vermelhas.
- Obrigado. Espero que em breve tenha notícias do Sr. Smith. Vou descer o rio e se vir a Aurora direi ao seu marido que está preocupada. Uma chaminé preta, não é?
- Não, senhor. Preta com uma faixa branca.
- Ah, claro. O costado é que é preto. Bom dia, Sr.ª Smith. Está aqui um barqueiro com um bote, Watson. Vamos apanhá-lo e atravessar o rio.
Depois de nos sentarmos sobre os bancos do bote, Holmes observou:
- O mais importante com este tipo de pessoas é nunca as deixar perceber que as suas informações têm alguma importância para nós. De outro modo fecham-se imediatamente, como uma ostra. Se ouvirmos as suas queixas, como aconteceu, é natural que consigamos o que pretendemos.
- O próximo passo parece agora bastante óbvio... - afirmei.
- Que faria, então?
- Alugaria uma lancha e iria rio abaixo à procura daAurora.
- Meu caro amigo, isso seria uma tarefa colossal. A lancha deve ter atracado num dos embarcadouros que existem ao longo das margens do rio desde aqui até Greenwich. A seguir à ponte há um verdadeiro labirinto de cais num espaço de vários quilómetros. Seriam precisos muitos dias para procurar neles todos, no caso de o fazermos sozinhos.
- Então, chamemos a polícia.
- Não. Tenciono chamar Athelney Jones, mas só no último momento. Não é mau tipo, e não quero fazer nada que o possa prejudicar profissionalmente. E, já que chegámos até aqui, gostaria de ser eu próprio a resolver o caso.
- Poderíamos então pôr um anúncio a pedir informações aos guardas dos cais?
- Pior ainda! Os nossos homens ficariam a saber que alguém anda à procura deles e sairiam do país. Tal como as coisas estão, o mais provável é fazerem-no, mas enquanto pensarem que estão em segurança não terão pressa. As actividades de Jones vão-nos ser úteis, pois o seu ponto de vista certamente que surgirá na imprensa diária, e os fugitivos pensarão que toda a gente está na pista errada.
- Que vamos fazer? - perguntei, quando desembarcámos perto da Penitenciária de Millbank.
- Apanhar este cabriolé, ir para casa, tomar o pequeno-almoço e dormir um pouco. Parece que vamos passar mais umas noites acordados. Cocheiro! Pare numa estação de telégrafo! Vamos ficar com o Toby, pois ainda nos pode vir a ser útil.
Parámos na estação dos correios de Great Peter Street.
Holmes enviou o seu telegrama.
- Sabe para quem era? - perguntou, quando recomeçámos a viagem.
- Não faço a mínima ideia.
- Lembra-se do corpo policial de detectives da divisão de Baker Street que contratei no caso de Jefferson Hope?
- Muito bem - respondi, rindo.
- Poderão prestar-nos uma preciosa ajuda neste caso.
Se falharem, tenho outros recursos, mas vou tentar primeiro com eles. O telegrama era para o safado tenentezinho Wiggins. Espero que ele e o seu bando cheguem antes de terminarmos o pequeno-almoço.
Estávamos entre as oito e as nove horas. Sentia uma forte reacção devida aos sucessivos acontecimentos excitantes daquela noite. Estava sem energia, estafado, tinha a mente embotada e o corpo cansado. Não possuía o entusiasmo profissional que impelia o meu companheiro, nem conseguia considerar o caso como um mero problema intelectual abstracto. Quanto à morte de Bartholomew Sholto, não ouvira dizer muito dele e não sentia uma intensa antipatia pelos seus assassinos.
Quanto ao tesouro, porém, era diferente. Parte dele pertencia justamente, à Menina Morstan. Enquanto houvesse alguma possibilidade de o recuperar estava pronto a dedicar a minha vida ao caso. Na verdade, se o encontrássemos, ela ficaria definitivamente inacessível para mim. Mas só um amor insignificante e egoísta poderia ser influenciado por tal pensamento. Se Holmes conseguisse descobrir os criminosos, eu ficaria com motivos mais que suficientes para me sentir obrigado a encontrar o tesouro.
Um banho, em Baker Street, e roupa lavada, melhoraram muito o meu estado de espírito. Quando desci para a sala encontrei o pequeno-almoço sobre a mesa e Holmes a servir o café.
- Cá está! - exclamou, rindo e apontando para um jornal aberto. - O activo Jones e o repórter omnipresente resolveram o assunto entre eles. Mas já deve estar farto do caso. É melhor comer primeiro os seus ovos com presunto.
Peguei no jornal e li a curta notícia que se intitulava:
CASO MISTERIOSO EM UPPER NORWOOD.
Cerca da meia-noite de ontem (lia-se no Standard) o Sr. Bartholomew Sholto, de Pondicherry Lodge, Upper Norwood, foi encontrado morto no seu quarto em circunstâncias que apontam para um acto criminoso. Tanto quanto sabemos, não foram detectados sinais de violência sobre o corpo do Sr. Sholto, mas desapareceu uma valiosa colecção de pérolas indianas que o falecido herdara do pai. A descoberta do sucedido foi feita pelo Sr. Sherlock Holmes e pelo Dr. Watson, que visitavam a casa acompanhados pelo Sr. Thaddeus Sholto, irmão do falecido. Por feliz coincidência, o Sr. Athelney Jones, conhecido membro do corpo de detectives da polícia, encontrava-se na esquadra de Norwood e chegou ao local meia hora depois do primeiro alarme.
A sua sagacidade e enorme experiência levaram à imediata detenção dos criminosos, tendo sido preso o irmão da vítima, Thaddeus Sholto, e ainda a governanta, a Sr.ª Bernstone, um mordomo indiano, chamado Lal Rao, e um guarda-portão de nome McMurdo. Não há dúvida que o ladrão ou ladrões estavam familiarizados com a casa. Os conhecimentos técnicos e a capacidade de observação minuciosa do Sr. Jones permitiram-lhe provar que os malfeitores não entraram pela porta ou pela janela, mas pelo telhado do edifício. Através de um alçapão, penetraram numa sala que comunicava com aquela onde foi encontrado o corpo. Este facto, que ficou claramente estabelecido, prova conclusivamente que não se tratou de um assalto casual. A pronta e enérgica acção dos agentes da lei mostra como é vantajosa, em certas ocasiões, a presença de um espírito decidido e experiente. Não podemos deixar de pensar que esta ocorrência fornece mais um argumento para aqueles que desejariam ver os nossos detectives mais descentralizados, estabelecendo desse modo um contacto próximo e efectivo com os casos que é seu dever investigar.
- Não é magnífico? - exclamou Holmes, sorrindo abertamente por cima da chávena de café. - Que pensa disto?
- Acho que por pouco não fomos também presos por causa do crime.
- É verdade. Creio que não estaremos muito seguros se Jones tiver outro dos seus ataques de energia.
Nesse momento a campainha da porta tocou fortemente.
Ouvi a Sr.ª Hudson, a nossa senhoria, erguer a voz num lamento de contrariedade e desânimo.
- Meu Deus, Holmes - observei, soerguendo-me -, parece que já vêm à nossa procura.
- Não, nada disso. Trata-se de uma força não oficial: o bando de Baker Street.
Acabara ele de falar quando se ouviu o ruído de pés descalços, a subir a escada, e de vozes estridentes.
Uma dúzia de miúdos da rua, sujos e esfarrapados, irromperam na sala. Apesar da tumultosa entrada, mostraram haver alguma disciplina entre eles, pois alinharam-se instantaneamente e ficaram a olhar-nos com rostos expectantes. Um deles, mais alto e mais velho que os outros, avançou com um ar vadio de superioridade que era extremamente engraçado naquele maltrapilhozinho desenvergonhado.
- Recebi a sua mensagem, senhor - disse ele -, e trouxe-os logo para cá. Gastámos três xelins e meio nos bilhetes.
- Aqui os tens - retorquiu Holmes, entregando-lhes algumas moedas. - Daqui para o futuro eles passam a contactar só contigo, Wiggins, e tu comigo. Não quero que me invadam a casa desta maneira. No entanto, agora podem ouvir todos as instruções. Quero saber onde está uma lancha a vapor chamada Aurora, pertencente a Mordecai Smith, preta com duas riscas vermelhas e chaminé preta com uma faixa branca. Deve estar algures no rio. Quero que um rapaz fique no embarcadouro de Mordecai Smith, em frente de Millbank, para ver se o barco regressa. Dividam as tarefas entre vocês e procurem cuidadosamente em ambas as margens do rio. Quando tiverem notícias, digam-me. Perceberam tudo?
- Sim, chefe - respondeu Wiggins.
- O pagamento do costume e um guinéu para quem encontrar o barco. Aqui têm um dia de avanço. Agora, ponham-se a andar!
Entregou um xelim a cada um. Lá desceram eles a escada ruidosamente. Depois vi-os a correr pela rua abaixo.
- Mesmo que a lancha esteja debaixo de água eles hão-de encontrá-la - disse Holmes, levantando-se da mesa e acendendo o cachimbo. - Conseguem ir a todo o lado, ver tudo, escutar toda a gente. Espero que a encontrem antes de anoitecer. Entretanto nada podemos fazer senão aguardar os resultados.
É impossível reatar a pista interrompida até que encontremos a Aurora ou o Sr. Mordecai Smith.
- O Toby podia comer estes restos - disse eu. - Vai deitar-se, Holmes?
- Não, não estou cansado. Tenho uma constituição física curiosa. Não me lembro de alguma vez ter sentido cansaço por trabalhar, embora a ociosidade me leve à exaustão. Vou fumar um bocado e pensar sobre este estranho caso que a minha estimada cliente nos entregou. Tenho a impressão que o nosso trabalho não vai ser difícil. Não há muitos homens com pernas de pau. Quanto ao outro homem, creio que deve ser absolutamente único.
- O outro homem novamente!
- Não tenciono de maneira nenhuma fazer dele um mistério para si. Mas decerto que tem a sua própria opinião. Consideremos os dados. Pegadas diminutas, dedos dos pés que nunca foram apertados por botas, pés descalços, bastão de madeira com cabeça de pedra, grande agilidade, pequenos dardos envenenados. Que conclusão tira de tudo isto?
- Um selvagem! - exclamei. - Talvez um daqueles indianos que eram sócios de Jonathan Small.
- Não é provável - retorquiu Holmes. - Quando vi pela primeira vez indícios de armas pouco habituais estive também inclinado a pensar isso, mas as características singulares daquelas pegadas levaram-me a reconsiderar o meu ponto de vista. Alguns habitantes da península do Indostão são homens pequenos, mas nenhum podia ter deixado aquelas pegadas. O hindu característico tem pés compridos e estreitos. Os Maometanos, que costumam usar sandálias, têm o dedo grande do pé bem separado dos outros devido à tira de couro que normalmente passa entre eles. Estes pequenos dardos, por sua vez, só poderiam ser disparados de uma maneira: através de um tubo. Onde iríamos, então, encontrar o nosso selvagem?
- Na América do Sul - aventurei.
Holmes estendeu a mão e tirou da estante um grosso livro.
- Este é o primeiro volume de um dicionário geográfico que está a ser agora publicado. Podemos considerá-lo como a melhor e mais actualizada obra neste género. Que temos aqui?
»Ilhas Andamão, situadas a 340 milhas a norte de Sumatra, no golfo de Bengala.
»Hum!, hum! Que é isto? Clima húmido, recifes de coral, tubarões, Port Blair, prisões, ilha de Rutland, plantações de algodão... Ah, aqui está!
»Os aborígenes das ilhas Andamão talvez possam ser considerados como sendo a raça mais pequena que existe sobre a Terra, embora alguns antropólogos prefiram certos aborígenes de África ou índios da América do Norte e da Terra do Fogo. A sua altura média não chega a 1,20 m, existindo, porém, bastantes adultos de altura muito inferior. São indivíduos ferozes, insociáveis, intratáveis, mas capazes de uma amizade profunda quando se alcança a sua confiança.
»Repare bem nisto, Watson. Ouça agora o que se segue.
»São naturalmente hediondos, tendo cabeças grandes e deformadas, olhos pequenos e cruéis, feições distorcidas. Os pés e as mãos são singularmente pequenos. Mostram-se tão intratáveis e ferozes que falharam todas as tentativas dos oficiais britânicos para os subjugar. Sempre foram um terror para os sobreviventes dos naufrágios. Abriam-lhes os miolos com as suas maças de cabeça de pedra ou matavam-nos com setas envenenadas. Estes massacres terminam invariavelmente com um banquete canibal.
»Um povo simpático e amigável, Watson! Se tivessem dado rédea solta a este tipo o caso ter-se-ia tornado muito mais sinistro. Calculo que, mesmo assim, Jonathan Small daria tudo para nunca o ter contratado.
- Mas como arranjou ele tão singular companheiro?
- Ah, isso não lhe sei dizer. Mas, visto que concluímos que Small veio das ilhas Andamão, não admira que esse ilhéu o acompanhe. Sem dúvida que saberemos tudo na devida altura. Olhe, Watson, você parece estar completamente exausto. Deite-se no sofá e veja se consigo adormecê-lo.
Tirou o violino de um canto. Enquanto me estendia, começou a tocar baixinho uma ária melodiosa que fazia sonhar - de sua autoria, sem dúvida, pois possuía um notável dom para o improviso. Tenho uma vaga recordação dos seus braços magros, do rosto sério e do movimento do arco do violino. Depois senti-me a flutuar tranquilamente num mar macio de som, até que dei comigo na terra dos sonhos sob o doce olhar de Mary Morstan.
Capítulo IX – Uma Quebra na Sequência
A tarde ia já avançada quando acordei. Sentia-me fresco e recomposto. Sherlock Holmes, com o violino pousado a seu lado, continuava sentado no mesmo sítio, embrenhado num livro. Quando olhou para mim vi-lhe no rosto uma sombra de preocupação.
- Dormiu profundamente - observou. - Receei que a nossa conversa o acordasse.
- Não ouvi nada - retorqui. - Chegaram notícias?
- Infelizmente, não. Confesso que estou surpreendido e desapontado. A esta hora esperava já saber qualquer coisa. Wiggins esteve cá. Disse que não conseguiram encontrar a lancha. É uma situação exasperante, pois cada hora que passa é importante.
- Posso fazer alguma coisa? Agora estou fresco e pronto para outra noite em claro.
- Não, não podemos fazer nada. Resta-nos esperar. Se sairmos, pode chegar alguma mensagem na nossa ausência, o que provocaria atrasos. Faça o que quiser; eu tenho de ficar aqui à espera.
- Então vou até Camberwell falar com a Sr.ª Cecil Forrester. Ontem ela pediu-me que a mantivesse informada.
- Falar com a Sr.ª Cecil Forrester? - perguntou Holmes, com um subtil sorriso no olhar.
- Bem, claro que com a Menina Morstan também. Estavam ansiosas por saber o que tinha acontecido.
- Eu não lhes contaria grande coisa - disse Holmes. - Nunca se pode confiar inteiramente nas mulheres, nem nas melhores de entre elas.
Não quis perder tempo a contestar esta opinião atroz e disse:
- Volto daqui a uma ou duas horas.
- Está bem! Boa sorte! Mas, já que vai atravessar o rio, podia entregar o Toby. Parece que não vamos precisar mais dele.
Levei o cão e, entregando meio soberano, deixei-o na casa do velho naturalista, em Pinchin Lane. Em Camberwell fui encontrar a Menina Morstan um pouco fatigada, devido às aventuras daquela noite, mas muito ansiosa por saber novidades.
A Sr.ª Forrester também estava cheia de curiosidade. Contei-lhes tudo o que fizéramos, suprimindo, contudo, as partes mais horríveis da tragédia. Assim, embora tivesse falado da morte do Sr. Sholto, nada disse acerca do método usado para o matar. Apesar de todas as minhas omissões, muitas coisas causaram-lhes espanto e sobressalto.
- Mas é um romance! - exclamou a Sr.ª Forrester. - Há uma dama ofendida, um tesouro de meio milhão, um canibal preto e um bandido com uma perna de pau. Fazem o papel do dragão ou do conde malvado convencionais.
- E dois cavaleiros andantes para ajudar - acrescentou a Menina Morstan, lançando-me um olhar brilhante.
- Ora, Mary, a sua fortuna depende do resultado desta investigação. Não me parece muito entusiasmada. Imagine só o que é ficar rica e ter o mundo a seus pés!
Senti uma certa alegria no meu coração por não notar nela qualquer sinal de excitação perante tal possibilidade. Pelo contrário, sacudindo orgulhosamente a cabeça para trás, deu a entender que o assunto pouco lhe interessava.
- É com o Sr. Thaddeus Sholto que estou preocupada - afirmou. - Nada mais tem importância. Acho que ele foi extremamente amável e honesto. É nosso dever livrá-lo daquela acusação terrível e infundada.
Anoitecia quando deixei Camberwell. Ao chegar a casa, já estava bastante escuro. Vi o livro e o cachimbo do meu companheiro ao pé da cadeira, mas ele desaparecera. Olhei em volta, esperando que tivesse deixado uma mensagem. Não havia nenhuma.
- Creio que o Sr. Sherlock Holmes saiu - disse à Sr.ª Hudson, quando ela entrou na sala para descer as persianas.
- Não, senhor. Foi para o quarto. Sabe - segredou ela em voz muito baixa -, receio que ele não esteja muito bem de saúde.
- Porquê, Sr.ª Hudson?
- Bem, está tão estranho. Depois de o senhor ter saído andou para trás e para diante, para trás e para diante; já estava farta de lhe ouvir os passos. Depois começou a falar sozinho e a resmungar. Sempre que tocava a campainha vinha ao topo das escadas e perguntava: «Quem é, Sr.ª Hudson?» E agora fechou-se no quarto, mas continuo a ouvi-lo andar de um lado para o outro como há bocado. Espero que não adoeça. Aventurei-me a dizer qualquer coisa sobre um remédio calmante, mas voltou -se para mim com um tal olhar que nem sei como consegui sair da sala.
- Creio que não precisa de se preocupar - disse eu. - Já tenho visto assim. Anda a pensar em qualquer coisa que inquieta.
Tentei tranquilizar a nossa prestável senhoria, mas eu próprio fiquei um pouco preocupado quando, ao longo da noite, continuando a ouvir de tempos a tempos o som arrastado das suas passadas, percebi como o seu espírito exaltado sofria com aquela inacção involuntária.
À hora do pequeno-almoço, Holmes aparentava grande cansaço e tinha o rosto um pouco corado pela febre.
- Está a dar cabo de si, meu velho - observei. - Ouvi-o andar de um lado para o outro durante toda a noite.
- Não consegui dormir - respondeu. - Este problema diabólico está a consumir-me. Não aceito que falhemos devido a um obstáculo insignificante, quando todos os outros foram já ultrapassados. Conheço os homens, a lancha, tudo; mas não chegam notícias. Já pus mais gente a trabalhar e socorri-me de todos os meios de que dispunha. Foram feitas buscas em todo o rio, nas duas margens, mas sem resultado. A Sr.ª Smith também nada soube acerca do seu marido.
. Ver-me-ei em breve obrigado a admitir que afundaram a lancha. Mas há objecções em relação a isso.
- Talvez a Sr.ª Smith nos tenha dado uma pista errada...
- Não, creio que podemos pôr de parte essa hipótese. Obtive informações que confirmam a existência de uma lancha com aquelas características.
- Não poderiam ter subido o rio?
- Também considerei essa possibilidade. Vão ser feitas buscas rio acima até Richmond. Se não chegarem notícias hoje, eu próprio entrarei em acção e procurarei os homens em vez do barco. Mas de certeza, de certeza, que teremos notícias.
Mas não tivemos. Nem uma palavra nos chegou, quer de Wiggins, quer dos outros grupos. Apareceram artigos acerca da tragédia de Norwood na maior parte dos jornais. Eram todos bastante hostis em relação ao infeliz Thaddeus Sholto. Não forneciam, contudo, novos pormenores, exceptuando a informação de que no dia seguinte iria ser realizado um inquérito. Fui a Camberwell nessa noite para comunicar às senhoras o nosso insucesso e, ao regressar, encontrei Holmes deprimido e taciturno. Mal respondia às minhas perguntas e esteve toda a tarde embrenhado em abstrusas análises químicas que envolviam grande aquecimento de retortas e destilação de vapores, até que ficou no ar um tal cheiro que me obrigou a sair da sala. Até altas horas da manhã ouvi o tinido dos tubos de ensaio, o que significava que ele continuava ainda com as suas experiências fedorentas.
Estava a amanhecer quando acordei de repente e fiquei surpreendido ao vê-lo ao pé da minha cama, vestido à marinheiro, com um casaco de lã grossa e um cachecol encarnado à volta do pescoço.
- Vou até ao rio, Watson - disse ele. - Tenho dado voltas e mais voltas à cabeça e só vejo uma maneira de resolver isto. Apesar de tudo, vale a pena tentar.
- Então com certeza que posso acompanhá-lo? - perguntei.
- Não. Será muito mais útil se ficar aqui no meu lugar.
Custa-me sair, pois embora Wiggins estivesse desanimado ontem à noite, decerto que deve chegar qualquer notícia durante o dia. Quero que abra todas as mensagens e telegramas e que aja segundo o seu critério se chegar qualquer informação. Posso confiar em si?
- Com certeza.
- Creio que não conseguirá comunicar comigo, pois nem eu próprio lhe sei dizer onde estarei. Mas se tiver sorte não vou demorar muito tempo. De qualquer maneira, devo já saber alguma coisa quando voltar.
À hora do pequeno-almoço ainda não tinha notícias dele.
Ao abrir o Standard, porém, descobri uma nova alusão ao caso.
Em relação à tragédia de Upper Norwood (lia-se)tudo leva a crer que o assunto promete ser ainda mais complexo e misterioso que a princípio se supunha. Novos indícios mostraram ser impossível ao Sr. Thaddeus Sholto ter estado de algum modo implicado no caso. O Sr. Thaddeus e a governanta, a Sr.ª Bernstone, foram libertados ontem ao fim da tarde. Supõe-se, porém, que a polícia possui uma pista que levará à detenção dos verdadeiros culpados, e as investigações prosseguem sob a direcção do inspector da Scotland Yard, Sr. Athelney Jones, conhecido pela sua determinação e sagacidade. Esperam-se novas prisões a qualquer momento.
«Boas notícias», pensei. «O nosso amigo Sholto está livre.
Gostava de saber qual é a nova pista, embora pareça tratar-se de um argumento estereotipado usado sempre que a polícia faz asneira.»
Atirei o jornal para cima da mesa, mas, nesse momento, os meus olhos pousaram sobre um anúncio.
Dizia o seguinte:
DESAPARECIDOS - Tendo Mordecai Smith, barqueiro, e o seu filho Jim, saído do seu embarcadouro cerca das três horas da manhã da última terça-feira, na lancha a vapor Aurora, preta com duas riscas vermelhas, chaminé preta com uma faixa branca, será paga a quantia de cinco libras a quem puder informar a Sr.a Smith, no embarcadouro ou no 221 B de Baker Street, acerca do paradeiro do citado Mordecai Smith e da lancha Aurora.
Era evidente que fora Holmes quem pusera o anúncio.
Bastava o endereço de Baker Street para o provar. Pareceu-me bastante engenhoso, porque poderia ser lido pelos fugitivos sem que se apercebessem de nada para além da natural ansiedade de uma mulher em relação ao seu marido desaparecido.
Foi um longo dia. Cada vez que ouvia bater à porta, ou passos apressados na rua, imaginava que era Holmes que chegava ou alguma resposta ao seu anúncio. Tentei ler. Mas o meu pensamento desviava-se para a nossa estranha investigação e para aquele par de invulgares malfeitores que perseguíamos. Perguntava a mim próprio se não haveria qualquer falha radical no raciocínio do meu companheiro. Não poderia ele estar a ser vítima de alguma ilusão? Não seria possível que o seu vivo e especulador espírito tivesse construído aquela abstrusa teoria sobre falsas premissas? Nunca o vira enganar-se, mas até o mais perspicaz raciocinador pode ocasionalmente errar. Era pessoa para cometer qualquer erro devido ao exagerado requinte da sua lógica, à sua preferência por uma explicação subtil e bizarra, ainda que outra mais simples e sensata se lhe oferecesse. Mas, por outro lado, eu próprio vira os indícios e escutara as razões das suas deduções.
Ao rever a longa cadeia de curiosas circunstâncias, muitas das quais triviais em si mesmas mas apontando numa mesma direcção, não pude deixar de admitir que, mesmo que a explicação de Holmes fosse incorrecta, a verdadeira teoria deveria parecer igualmente forçada e surpreendente.
Às três horas da tarde soou a campainha, ouviu-se uma voz autoritária no vestíbulo, e, para minha surpresa, apareceu diante de mim o Sr. Athelney Jones. O seu comportamento, contudo, em nada se comparava aos modos bruscos e convencidos do professor de senso comum que tomara conta do caso com toda a segurança em Upper Norwood. Estava cabisbaixo. A sua atitude era de humildade e até de subserviência.
- Bom dia, senhor, bom dia - disse ele. - O Sr. Sherlock Holmes saiu, não é verdade?
- Sim, e não sei quando volta. Mas talvez queira esperar. Sente-se e experimente um destes charutos.
- Obrigado, aceito de bom grado - retorquiu o detective, limpando a cara com um lenço estampado a vermelho.
- E um uísque com soda?
- Bem, meio copo. Está muito calor para esta altura do ano, e ando bastante preocupado. Conhece a minha teoria acerca do caso de Norwood?
- Lembro-me de a ter ouvido.
- Bem, fui obrigado a reconsiderá-la. Tinha a minha rede bem apertada à volta do Sr. Thaddeus Sholto, que conseguiu, contudo, fazer-lhe um buraco no meio para sair. Alegou um álibi completamente irrefutável. Desde que saiu do quarto do irmão esteve sempre acompanhado por alguém. Por isso não pode ter sido ele quem subiu ao telhado e passou pelo alçapão. É um caso muito obscuro, e o meu crédito profissional está em xeque. Gostaria que me prestassem um pequeno auxílio.
- Todos nós precisamos, por vezes, de ajuda - comentei.
- O seu amigo, o Sr. Sherlock Holmes, é um homem fantástico - prosseguiu Athelney Jones, com a sua voz rouca e num tom de confidencialidade. - É um homem que nunca sai derrotado. Já o vi envolvido em muitos casos, mas nunca apareceu um sobre o qual não conseguisse lançar alguma luz. É irregular nos métodos que usa, e talvez um pouco precipitado na elaboração das suas teorias, mas julgo que, apesar de tudo, teria dado um esplêndido agente, e não me importo que me ouçam a dizê-lo. Recebi um telegrama dele, hoje de manhã, segundo o qual depreendo que tem qualquer pista relacionada com o caso Sholto. Aqui está a mensagem.
Tirou o telegrama do bolso e estendeu-o para mim. Fora enviado de Poplar às doze horas.
Vá imediatamente a Baker Street (lia-se). Se eu ainda não tiver regressado, espere por mim. Estou prestes a apanhar os culpados do caso Sholto. Pode vir connosco esta noite se quiser estar presente no momento da captura.
- Boas notícias. É evidente que ele conseguiu encontrar outra vez a pista certa - disse eu.
- Ah, então também se tinha enganado! - exclamou Jones com nítida satisfação. - Até os melhores de entre nós erram. Claro que isto pode ser um falso alarme, mas é meu dever, como agente da lei, não deixar escapar qualquer oportunidade. Mas estão a bater à porta. Talvez seja ele.
Ouviram-se passos pesados a subir a escada e o ruidoso arquejar de um homem que parecia respirar com grande dificuldade. Parou uma ou duas vezes, como se a subida fosse demais para ele, mas, por fim, apareceu à porta e entrou. A sua aparência correspondia aos sons que ouvíramos. Era um homem idoso, vestido com roupas de marinheiro, trazendo um velho casaco de lã abotoado até ao pescoço. Tinha as costas curvadas, os joelhos a tremer e uma impressionante respiração asmática.
Quando se apoiou sobre o seu grosso varapau de carvalho ergueu os ombros num esforço para inspirar profundamente. Trazia um cachecol colorido à volta do pescoço, cobrindo-lhe o queixo, e da cara quase que apenas via os olhos escuros e penetrantes, as espessas sobrancelhas brancas e as longas suíças grisalhas. Pelo seu aspecto tive a impressão de que se tratava de um respeitável capitão de navio que envelhecera e caíra na pobreza.
- Que se passa, homem? - perguntei.
Olhou em volta, com a lentidão e o método próprios da velhice, e disse:
- O Sr. Sherlock Holmes está?
- Não mas eu estou a substituí-lo. Pode transmitir-me qualquer mensagem que tenha para ele.
- Era com ele próprio que queria falar - retorquiu.
- Mas estou a dizer-lhe que pode falar comigo. Era acerca do barco de Mordecai Smith?
- Sim. Sei muito bem onde está. E também sei onde estão os homens que ele quer encontrar. E sei onde está o tesouro. Sei tudo.
- Então fale, que eu depois digo-lhe.
- Era com ele que queria falar - repetiu com a petulante obstinação de homem muito velho. - Bem, tem de esperar que ele chegue.
- Não, não. Não vou perder um dia inteiro à espera. Se o Sr. Holmes não está cá, então o Sr. Holmes que descubra tudo sozinho. Não quero saber dos senhores para nada e não direi nem uma palavra.
Dirigiu-se para a porta, mas Athelney Jones pôs-se à frente dele e disse:
- Espere um pouco, meu amigo. Você tem uma informação importante e não deve ir-se embora. Temos de retê-lo aqui, quer queira quer não, até que o nosso amigo volte.
O velho deu uma corrida em direcção à porta, mas Athelney Jones interpôs-se mais uma vez, tapando a porta com o seu corpo avantajado. O velho marinheiro reconheceu que era inútil insistir.
- Mas que linda maneira de tratar uma pessoa! - exclamou, batendo com o varapau no chão. - Venho-aqui para falar com um cavalheiro, e vocês os dois, que nunca vi na minha vida, agarram-me e tratam-me desta maneira!
- Não ficará prejudicado - disse eu. - Recompensá-lo-emos pela perda de tempo. Sente-se aqui no sofá, que não há-de ter de esperar muito.
Avançou com ar carrancudo e sentou-se, apoiando o queixo sobre as mãos. Eu e Jones retomámos os nossos charutos e a conversa. Mas, de repente, a voz de Holmes ouviu-se na sala:
- Acho que também me podiam oferecer um charuto. Ambos estremecemos nas cadeiras. Lá estava Holmes sentado a nosso lado, com um ar muito divertido.
- Holmes! - exclamei. - Você aqui! Mas onde está o velhote?
- Aqui está o velhote - respondeu, mostrando um monte de cabelo branco. - Aqui está ele: peruca, suíças, sobrancelhas, tudo. Creio que o meu disfarce estava bastante bom, mas não esperava que resistisse a este teste.
- Ah, que partida! - exclamou Jones, deliciado. - Você dava um bom actor. A sua tosse era mesmo de velho, e aquelas pernas trémulas mereciam dez libras por semana. Mas acho que lhe conheci os olhos. Sabe, não nos enganou assim tão facilmente.
- Tenho andado o dia todo com este disfarce - disse Holmes, enquanto acendia o charuto. - Sabem, muita gente do mundo do crime já começa a conhecer-me, especialmente desde que aqui o nosso amigo publicou alguns dos meus casos; por isso tenho de ir sempre para o campo de batalha com um disfarce simples como este. Recebeu o meu telegrama?
- Sim, foi isso que me trouxe aqui.
- O seu caso tem progredido?
- Voltou tudo ao princípio. Tive de libertar dois dos meus prisioneiros, e não há provas contra os outros dois.
- Não se preocupe. Vamos dar-lhe outros dois para os substituir. Mas terá de sujeitar-se às minhas ordens. Ficará com todo o mérito oficial, mas terá de agir segundo as minhas directrizes. Está de acordo?
- Inteiramente, se me ajudar a encontrar os homens.
- Bem, então, em primeiro lugar quero que um barco da polícia, veloz, uma lancha a vapor, esteja em Westminster Stairs às sete horas.
- Isso arranja-se facilmente. Há sempre um por ali, mas posso ir telefonar para ter a certeza.
- Quero também dois homens fortes para o caso de haver resistência.
- Irão dois ou três no barco. Mais alguma coisa?
- Quando prendermos os homens apanharemos o tesouro. Creio que será um prazer para o meu amigo levar o cofre à jovem que tem direito a metade do tesouro. Deixe que seja ela a primeira a abri-lo. Hem, Watson?
- Terei muito gosto nisso.
- É um procedimento ilegal - disse Jones, abanando a cabeça. - Mas como tudo isto é ilegal, acho que podemos fechar os olhos. O tesouro deve ser depois entregue às autoridades até ser concluída a investigação oficial.
- Com certeza. Não haverá problema. Um outro ponto: gostaria muito de conhecer alguns pormenores acerca deste caso contados pelo próprio Jonathan Small. Sabe que gosto de conhecer todos os pormenores dos meus casos. Não se opõe a que eu tenha uma conversa não oficial com ele, em minha casa ou noutro sítio qualquer, sob vigilância eficiente?
- Bem, você é o senhor da situação. Ainda não me provaram a existência desse tal Jonathan Small. No entanto, se conseguir apanhá-lo, não vejo que lhe possa recusar uma conversa com ele.
- Está então combinado?
- Claro. Há mais alguma coisa?
- Apenas o meu convite para que jante connosco. O jantar estará pronto daqui a meia hora. Tenho ostras, dois galos silvestres e um vinho branco seleccionado. Watson, ainda não teve oportunidade de reconhecer os meus méritos gastronómicos!
Capítulo X - O Fim do Homem da Ilha
A nossa refeição foi animada. Holmes, quando queria, era um excelente conversador, tal como, naquela noite, o demonstrou. Parecia estar num estado de exaltação nervosa. Nunca o vira tão brilhante. Passava rapidamente de um assunto para outro - teatro sacro, cerâmica medieval, violinos Stradivarius, budismo do Ceilão, navios de guerra do futuro -, abordando cada tema como se lhe tivesse dedicado um estudo especial. A sua boa disposição era uma reacção à depressão dos dias precedentes. Athelney Jones mostrou ser uma pessoa bastante sociável nos seus momentos de descontracção e participou no jantar com ar de bon vivant. Quanto a mim, senti-me excitado ao pensar que estava próximo o fim do nosso caso e fui contagiado pela alegria de Holmes. Nenhum de nós aludiu, durante o jantar, ao motivo que nos reunira.
Levantada a mesa, Holmes olhou para o relógio, encheu três cálices com Porto e disse:
- Bem cheios, para brindar pelo sucesso da nossa pequena expedição. E agora já está na hora de sairmos. Tem alguma pistola, Watson?
- Tenho o meu velho revólver de serviço na gaveta da secretária.
- Então é melhor trazê-lo. É bom que estejamos preparados. A carruagem já chegou. Pedi que estivesse cá às seis e meia.
Pouco passava das sete quando chegámos ao cais de Westminster, onde nos esperava uma lancha. Holmes observou-a atentamente.
- Há alguma coisa que indique tratar-se de um barco da polícia?
- Sim, a lanterna verde daquele lado.
- Então, tire-a.
Assim foi feito. Saltámos para o barco e as amarras foram soltas. Jones, Holmes e eu sentámo-nos à proa. Ia um homem ao leme, outro a tomar conta das máquinas e dois corpulentos inspectores da polícia à frente.
- Para onde vamos? - perguntou Jones.
- Para a Torre. Diga-lhes para pararem diante do estaleiro Jacobson.
O barco era muito veloz. Ultrapassámos rapidamente as longas filas de barcos de carga como se estivessem parados. Holmes sorriu com satisfação quando passámos por um barco a vapor e o deixámos para trás.
- Não há barco que não consigamos apanhar - observou.
- Não é bem assim, mas poucas lanchas poderão bater-nos.
- Temos de apanhar a Aurora, que tem fama de ser muito veloz. Mas vou dar-lhe conta da situação. Lembra-se como eu andava aborrecido por estarmos a ser retidos por uma coisa tão insignificante?
- Sim.
- Bem, descansei o espírito, embrenhando-me numa análise química. Um dos nossos maiores estadistas disse que uma mudança de trabalho é o melhor descanso. E é verdade. Depois de conseguir dissolver o hidrocarboneto da minha experiência, voltei ao problema dos irmãos Sholto e revi todo o caso. Os meus rapazes tinham percorrido o rio de cima a baixo sem qualquer resultado. A lancha não estava em nenhum embarcadouro nem regressara. Era pouco provável que tivesse sido afundada para ocultar qualquer indício, embora continuasse a ser uma hipótese possível se tudo o resto falhasse. Sabia que esse tal Small era esperto, mas não o considerava capaz de fazer qualquer coisa que exigisse uma inteligência subtil, que geralmente só se adquire com uma educação superior. Pensei então que ele devia estar em Londres hájá algum tempo, visto termos indícios de que manteve Pondicherry Lodge sob constante vigilância, não sendo natural que partisse de um momento para o outro. Precisaria de algum tempo, nem que fosse um dia, para preparar as suas coisas. Era, sem dúvida, o mais provável.
- O raciocínio parece pouco consistente - observei. - E mais provável que ele tivesse preparado tudo antecipadamente.
- Não, não creio. O covil do nosso homem era um esconderijo muito útil, em caso de necessidade, para que o abandonasse antes de ter a certeza de que não precisaria mais dele. Mas atendi a uma segunda consideração. Jonathan Small deve ter sentido que a estranha aparência do seu companheiro, mesmo que o tivesse coberto de roupas, daria origem a falatório e poderia ser associado à tragédia de Pondicherry Lodge. Era suficientemente esperto para perceber isso. Tinham saído do seu esconderijo à noite, e ele desejaria regressar antes que surgisse a luz do dia. Mas já passava das três horas, segundo a Sr.ª Smith, quando chegaram ao barco. Devia estar a clarear e começaria a aparecer gente daí a uma hora, aproximadamente. Portanto, concluí que eles não deveriam ter ido muito longe. Pagaram bem a Smith para calar a boca, alugaram-lhe a lancha para a fuga final e regressaram apressadamente ao esconderijo com o cofre do tesouro. Daí a algumas noites, depois de lerem os jornais para saber se havia alguma suspeita acerca deles, iriam na lancha até qualquer navio em Gravesend ou Downs, onde já teriam, sem dúvida, tratado das passagens para a América ou para as colónias.
- Mas... e a lancha? Não podiam tê-la levado para o esconderijo.
- Exactamente. Conclui que a lancha não deve ter ficado muito longe de lá, mesmo que não esteja à vista. Pus-me, então, no lugar de Small e considerei o assunto como faria um homem com a sua capacidade. Ele pensaria, provavelmente, que devolver a lancha ou guardá-la num embarcadouro tornaria a perseguição mais fácil se a polícia lhes descobrisse o rasto. Como poderia, então, esconder a lancha e tê-la à sua disposição quando a quisesse?
Imaginei o que faria se estivesse na mesma situação e descobri apenas uma maneira de o conseguir. Entregaria a lancha a um construtor ou reparador de barcos, mandando fazer qualquer reparação insignificante. Seria removida para um estaleiro, ficaria escondida e, ao mesmo tempo, disponível para quando fosse precisa.
- Parece bastante simples
- Precisamente estas coisas muito simples é que podem facilmente passar despercebidas. Decidi, porém, agir em conformidade com a ideia que tivera. Vesti aquela inofensiva roupa de marinheiro e procurei em todos os estaleiros pelo rio abaixo. Obtive respostas negativas em quinze, mas no décimo sexto, o estaleiro Jacobson, disseram-me que aAurora lhes fora entregue dois dias antes por um homem com uma perna de pau, para que o leme fosse arranjado. «O leme não está avariado», disse o contramestre. «Ali está ela, com as riscas vermelhas.» Mas quem havia de aparecer nesse momento? Mordecai Smith, o dono da lancha desaparecido. Bebera de mais. Não o teria reconhecido, claro, mas ele disse o seu nome e o da lancha. «Quero-a hoje à noite às oito horas», disse ele, «às oito em ponto, não se esqueça, porque tenho dois cavalheiros que não gostam de esperar.» Era evidente que fora bem pago, pois estava cheio de dinheiro e fazia tilintar os xelins diante do homem. Segui-o durante algum tempo, mas acabou por se meter numa taberna. Voltei ao estaleiro e, tendo encontrado um dos meus rapazes no caminho, deixei-o a vigiar a lancha. Ficará à beira do rio e acenará com o lenço quando eles partirem. Nessa altura já teremos de estar a bordo e prontos para os seguir. Não acredito que não consigamos apanhar os homens e o tesouro.
- Você planeou tudo muito bem, sejam ou não eles os homens certos - disse Jones. - Mas se o caso estivesse nas minhas mãos, colocaria uma força policial no estaleiro e prendê-los-ia quando chegassem.
- Assim nunca chegaria a prendê-los. Esse tal Small é um tipo muito esperto. Mandaria alguém vigiar e se suspeitasse de qualquer coisa ficaria escondido mais uma semana.
- Mas você podia não ter largado Mordecai Smith e ser assim conduzido até ao local do esconderijo - disse eu.
- Nesse caso desperdiçaria o meu dia. Não é nada provável que Smith saiba onde eles vivem. Enquanto tiver bebida, e for bem pago, por que haveria de fazer perguntas? Mandam-lhe recados a dizer o que deve fazer. Não, reflecti bastante acerca de todas as soluções possíveis, e esta é a melhor.
Enquanto decorrera a conversa, passáramos sob as muitas pontes que atravessam o Tamisa. Por altura da City, os últimos raios de sol batiam na cruz da cúpula da catedral de S. Paulo. Anoitecia quando chegámos à Torre de Londres.
- Ali é o estaleiro Jacobson - disse Holmes, apontando para uma série de mastros e cordame de navios que se viam para os lados do Surrey. - Naveguem lentamente por trás desta fila de barcaças. - Tirou do bolso um par de binóculos e olhou durante algum tempo para a margem. - Estou a ver a minha sentinela no seu posto - observou -, mas não há sinal do lenço.
- E se descêssemos um pouco o rio e ficássemos à espera deles? - disse Jones, impacientemente.
Estávamos todos impacientes, até os polícias e os fogueiros, que tinham uma ideia muito vaga do que se antecipava.
- Não devemos tomar nada como garantido - respondeu Holmes. - O mais provável é que desçam o rio, mas não podemos ter a certeza. Daqui vemos a estrada do estaleiro e dificilmente seremos vistos. Vai estar uma noite clara e haverá muita luz. Olhe a quantidade de gente ali em baixo sob a luz dos candeeiros.
- Estão a sair do trabalho no estaleiro.
- Uns tipos com mau aspecto. Mas creio que cada pessoa tem uma pequena centelha de imortalidade escondida dentro de si. Ninguém o diria, ao olhar para eles. Não há nenhuma certeza a priori em relação a isso. O homem é um estranho enigma!
- Alguém lhe chamou uma alma oculta num animal... - sugeri.
- Winwood Reade trata bem do assunto - disse Holmes. - Afirma que o indivíduo é um quebra-cabeças insolúvel, mas quando integrado num grupo torna-se uma certeza matemática. Nunca é possível, por exemplo, predizer o que alguém fará, mas pode afirmar-se com precisão qual será a reacção de um grupo numeroso. Os indivíduos variam, enquanto as percentagens se mantêm constantes. Assim o afirma a estatística. Aquilo é um lenço? Há ali uma coisa branca a esvoaçar.
- Sim, é o seu rapaz! - exclamei. - Vejo-o perfeitamente.
- E ali vem a Aurora - disse Holmes -, e depressa como o diabo! Avance a toda a velocidade, maquinista. Atrás daquela lancha com a luz amarela. Meu Deus, nunca perdoarei a mim próprio se a deixarmos escapar!
A lancha deslizara, sem que a víssemos, pela saída do estaleiro e passara entre duas ou três embarcações, de maneira que adquirira bastante velocidade antes de surgir diante de nós. Encostada à margem, descia agora, velozmente, o rio. Jones olhou-a com ar grave e abanou a cabeça, dizendo:
- É muito veloz. Duvido que a consigamos apanhar.
- Temos de a apanhar! - gritou Holmes. - Mais carvão, fogueiros! O máximo possível! Se formos a todo o vapor, havemos de os apanhar!
Íamos agora razoavelmente perto da outra lancha. As fornalhas rugiam, as máquinas potentes zumbiam e ressoavam como um grande coração metálico. A proa afilada cortava as águas tranquilas do rio, fazendo ondas para a esquerda e para a direita.
Com a vibração das máquinas tudo estremecia como uma coisa viva. Uma grande lanterna amarela, na proa, lançava um longo e trémulo feixe de luz à nossa frente. Uma mancha escura sobre a água indicava onde estava a Aurora, e o turbilhão de espuma branca que deixava para trás mostrava a enorme velocidade a que ia. Serpenteávamos rapidamente por entre lanchas, vapores e barcos de mercadorias. Vozes chamavam-nos da escuridão, mas aAurora continuava a sua marcha alucinante, e nós seguíamo-la a curta distância.
- Mais carvão! Mais carvão! - gritou Holmes, olhando para dentro da casa das máquinas, com a luz da lanterna a incidir sobre o seu impaciente rosto aquilino. - Ponham as máquinas a todo o vapor.
- Parece que nos estamos a aproximar - disse Jones, fitando fixamente a Aurora.
- Tenho a certeza de que sim - retorqui. - Vamos apanhá-la dentro de poucos minutos.
Nesse momento, porém, por má sorte nossa, um rebocador que puxava três barcas atravessou-se diante da lancha. Dificilmente conseguimos evitar uma colisão, e, enquanto contornávamos as embarcações para retomar o nosso caminho, a Aurora adiantou-se uns bons duzentos metros. Manteve-se, no entanto, bem visível. Entretanto, o crepúsculo sombrio e incerto ia-se transformando numa noite clara, iluminada por estrelas. As nossas caldeiras davam o seu máximo - a frágil embarcação vibrava e rangia com a violenta energia que nos fazia avançar. Passámos velozmente sob a Ponte de Londres, deixámos para trás as docas de West India, descemos Depthford Reach e circundámos a Isle of Dogs. A mancha escura à nossa frente transformara-se agora, com toda a nitidez, na graciosaAurora. Jones fez incidir a lanterna sobre ela, de modo que pudemos ver as figuras sobre o convés.
Um homem ia sentado à popa, inclinado sobre qualquer coisa que tinha entre os joelhos. A seu lado via-se uma massa escura que parecia um cão terra-nova. O rapaz segurava o leme, e, contra o clarão vermelho da fornalha, estava o velho Smith, despido da cintura para cima, a atirar carvão para salvar a pele. A princípio, não deviam ter a certeza se os perseguíamos ou não, mas agora, como seguíramos todas as suas voltas não poderiam ter dúvidas. Em Greenwich, estávamos a cerca de duzentos metros deles. Em Black não nos separariam mais de cento e cinquenta. Persegui muita gente em muitos países, durante a minha atribulada carreira, mas nunca sentira tanta emoção como nesta louca e veloz caçada ao homem pelo Tamisa abaixo. Gradualmente íamo-nos aproximando deles. No silêncio da noite ouvíamos o trabalhar ruidoso das suas máquinas. O homem à popa continuava inclinado sobre o convés e movia os braços como se estivesse muito atarefado. Voltava-se para trás de tempos a tempos e media com o olhar a distância que os separava ainda de nós. Quanto mais nos aproximávamos, mais Jones lhes gritava que parassem. Já não nos separavam mais que quatro comprimentos de barco, deslizando ambas as lanchas a uma velocidade tremenda. Passávamos agora por uma parte do rio bastante iluminada, com Barking Level de um lado e os melancólicos Plumstead Marshes do outro. Ouvindo o nosso chamamento, o homem à popa ergueu-se sobre o convés e agitou os pulsos cerrados para nós, ao mesmo tempo que praguejava. Era um homem de boa estatura, forte, e quando se levantou, afastando as pernas, pude ver que da coxa direita para baixo tinha uma perna de pau. Ao som dos seus estridentes gritos de ira, notou-se algum movimento sobre o convés. Surgiu, então, um homenzinho preto - o mais pequeno que alguma vez vira - com uma cabeça enorme e deformada e um amontoado de cabelo desgrenhado.
Holmes sacara já o revólver, e eu tirei o meu ao ver aquela criatura selvagem e desfigurada. Tinha à volta do corpo uma espécie de sobretudo ou cobertor escuro que apenas deixava à vista a cara, mas uma cara que provocaria uma noite de insônias a qualquer pessoa. Nunca vira feições marcadas por uma tal brutalidade e crueldade. Os olhos, pequenos, tinham um brilho intenso e malévolo e os lábios deixavam ver os dentes a bater, numa expressão de fúria animalesca.
- Se ele erguer a mão disparamos - disse Holmes calmamente.
Agora apenas nos separava deles o comprimento de um barco. Ainda lembro a imagem dos dois homens, o branco com as pernas afastadas, praguejando, o ímpio anão com a sua cara hedionda e os dentes fortes e amarelos a ranger para nós sob a luz da lanterna.
Felizmente que o conseguíamos ver tão bem quando tirou de baixo da sua cobertura um curto tubo de madeira e o levou aos lábios. As nossas pistolas ressoaram ao mesmo tempo. Rodopiou, ergueu os braços, e, com um grito abafado, caiu ao rio. Tive um vislumbre dos seus olhos maldosos e ameaçadores no meio do redemoinho branco das águas. Nesse mesmo instante o homem da perna de pau correu para o leme e virou-o bruscamente, de maneira que o barco se dirigiu para a margem sul, enquanto nós passávamos rente à' sua popa. Depressa voltámos a persegui-la, mas a lancha já quase que atingira a margem. Era um lugar agreste e desolado, onde a Lua brilhava sobre uma vasta extensão de terrenos pantanosos, com lagos de água estagnada e zonas de vegetação decadente. A lancha, com um ruído surdo, embateu na margem lamacenta, ficando com a proa no ar e a popa inundada. O fugitivo saltou para fora, mas a perna de pau logo se enterrou completamente no solo ensopado.
Foi em vão que se esforçou e contorceu. Não conseguia sequer dar um passo, nem para a frente nem para trás. Berrava com uma raiva impotente e dava freneticamente pontapés na lama com a perna livre, mas os seus gestos só faziam enterrar mais profundamente a perna de pau. Quando nos aproximámos, na nossa lancha, estava tão enterrado que tivemos de lhe lançar uma corda à volta do corpo para o içar, como a um peixe perigoso, para dentro do barco. Os dois Smiths, pai e filho, sentaram-se com ar carrancudo na sua lancha, mas saíram mansamente quando ordenámos que o fizessem. Prendemos a Aurora com um cabo à nossa popa e tirámo-la da lama. Um cofre de ferro, sólido, de fabrico indiano, estava sobre o convés. Era o mesmo, sem dúvida, que contivera o agoirento tesouro dos Sholtos. Não havia chave; era bastante pesado, de modo que o transportámos cuidadosamente para a nossa pequena cabina. Ao subirmos lentamente o rio, dirigimos a lanterna em todas as direcções, mas não vimos sinal do homem da ilha. Algures, no lodo escuro do fundo do Tamisa, ficaram os ossos daquele estranho visitante das nossas costas.
- Veja isto - disse Holmes, apontando para a escotilha de madeira. - Por pouco que não fomos suficientemente rápidos a disparar. - Mesmo atrás do sítio onde estivéramos, ficara cravado um daqueles dardos assassinos que tão bem conhecíamos. Devia ter passado entre nós os dois no momento em que disparámos. Holmes sorriu, ao vê-lo, e encolheu os ombros despreocupadamente, como era seu hábito, mas confesso que fiquei agoniado ao pensar na morte horrível que passara tão perto de nós naquela noite.
Capítulo XI - O Grande Tesouro de Agra
O nosso Prisioneiro sentou-se na cabina - em frente do cofre de ferro pelo qual tanto fizera e esperara antes de conseguir obtê-lo. Era um tipo de olhar arrogante, tostado pelo sol, com um rosto cor de mogno coberto de rugas, que revelava uma vida dura passada ao ar livre. O queixo proeminente, sob a barba, era sinal de um homem persistente nos seus propósitos. Devia ter cerca de cinquenta anos, pois o cabelo preto e encaracolado estava coberto de cãs. O rosto, quando sereno, não era desagradável, embora as espessas sobrancelhas e o queixo agressivo lhe dessem, como depois constatei, uma expressão terrível quando, irado. Estava agora com as mãos algemadas sobre o colo, cabisbaixo, fitando de olhos penetrantes e a piscar o cofre que fora a causa das suas más acções. Pareceu-me haver mais pena que raiva na sua atitude rígida e contida. Chegou a lançar-me um olhar em que notei um certo ar de humor.
- Bem Jonathan Small - disse Holmes, acendendo um charuto -, lamento que isto tenha acabado assim.
- Também eu, senhor - respondeu o outro. - Mas acho que não mereço a forca. Dou-lhe a minha palavra que nunca levantei um dedo contra o Sr. Sholto. Foi aquele anão dos diabos, Tonga, que lhe atirou um dos seus malditos dardos. Não tive culpa. Fiquei tão desgostoso como se ele fosse da minha família. Espanquei aquele demónio com uma corda por causa disso, mas a coisa estava feita, e eu não podia desfazê-la.
- Fume um charuto - disse Holmes. - E é melhor beber um golo da minha garrafa, pois está todo encharcado. Sendo esse seu amigo preto um homem tão pequeno e com pouca força, como esperava que ele dominasse o Sr. Sholto enquanto você subia pela corda?
- Parece que o senhor sabe tanto sobre o assunto como se tivesse estado lá.
A verdade é que eu pensava que não ia encontrar ninguém no quarto. Conhecia bem os hábitos da casa, e o Sr. Sholto costumava jantar àquela hora. Não vou fazer segredo disto. A melhor defesa para mim é contar a verdade. Mas digo-lhe, se tivesse sido o velho major, iria para a forca sem me pesar a consciência. Hesitaria tanto esfaqueá-lo como fumar este charuto. Agora não há direito que seja condenado por causa deste jovem Sholto com quem nunca tive qualquer disputa.
- Você está sob a responsabilidade do Sr. Athelney Jones, da Scotland Yard. Ele vai levá-lo a minha.casa, e peço-lhe que me conte a história verdadeira acerca deste caso. Deve confessar tudo, pois, se o fizer, espero vir a ser-lhe útil. Posso provar que o veneno actua tão rapidamente que o homem já estava morto quando você chegou ao quarto.
- Estava morto, sim senhor. Nunca me senti tão aflito em toda a minha vida como ao vê-lo a rir para mim, com a cabeça caída para o lado, quando entrei pela janela. Sinceramente que me chocou. Quase que matava Tonga se ele não tivesse fugido. Foi assim que deixou lá o pau e também alguns dardos, como depois me disse. Acho que isso ajudou o senhor a descobrir a nossa pista; embora não saiba como conseguiu apanhar-nos. Não lhe tenho rancor. Mas é uma coisa estranha - acrescentou com um sorriso amargo que eu, com direito a meio milhão de libras, tenha passado metade da vida a construir um quebra-mar em Andamão e esteja agora para passar a outra metade a fazer esgotos em Dartmoor. Foi maldito o dia em que pela primeira vez vi o mercador Achmet e me meti nisso do tesouro de Agra, que nunca trouxe senão desgraça a quem o possuiu. A ele trouxe-lhe a morte, ao major Sholto medo e remorso, a mim escravidão para toda a vida.
Nesse momento, o corpulento Athelney Jones entrou na pequena cabina.
- Parece uma reunião de família - observou. - Holmes, acho que vou beber um golo dessa garrafa. Bem, penso que devemos congratularmo-nos mutuamente. É pena não termos apanhado vivo o outro, mas não havia alternativa. Ouça lá, Holmes, tem de confessar que por pouco não os deixou escapar. Fizemos tudo o que era possível para conseguir apanhar a lancha.
- Tudo está bem quando acaba bem - disse Holmes. - Mas é verdade que não sabia que a Aurora era tão veloz.
- Smith diz que é uma das lanchas mais rápidas que há no rio, e que, se tivesse outro homem a ajudá-lo nas máquinas, nunca a apanharíamos. Jura que não sabia nada acerca do caso de Norwood.
- E não sabia - exclamou o nosso prisioneiro -, nem uma palavra! Escolhi a lancha dele porque ouvi dizer que era muito veloz. Não lhe dissemos nada; mas pagámos-lhe bem, e receberia qualquer coisa de valor se chegássemos ao navio, o Esmeralda, em Gravestone, pronto a partir para o Brasil.
- Bem, se ele não fez nada de mal, nada de mal lhe acontecerá. Embora sejamos rápidos a capturar os nossos homens, não somos assim tão rápidos a condená-los.
Era divertido ver como o vaidoso Jones já começava a dar-se ares de responsável pela captura. O ligeiro sorriso que aflorou sobre o rosto de Sherlock Holmes revelava-me que também a ele o discurso não passara despercebido.
- Dirigimo-nos agora para Vauxhall Bridge - disse Jones - e deixá-lo-emos em terra, Dr. Watson, com o cofre do tesouro. Nem preciso de lhe dizer que assumo uma pesada responsabilidade ao fazer isto. Não é legal, mas, claro, um acordo é um acordo. Tenho, contudo, como é meu dever, que mandar um inspector acompanhá-lo, pois transporta um carregamento muito valioso. Vai de carruagem, não é verdade?
- Sim, vou.
- É pena não termos a chave, para que pudéssemos fazer primeiro um inventário. Terá que o arrombar. Onde está a chave, homem?
- No fundo do rio - respondeu Small secamente.
- Hum! Não precisava de nos causar mais este problema. Já nos deu bastante trabalho apanhá-lo. Mas, Doutor, nem é necessário dizer-lhe para ter cuidado. Traga depois o cofre consigo para Baker Street. Lá nos encontrará, depois de termos passado pela esquadra.
Deixaram-me em Vauxhall, com o meu pesado cofre de ferro e acompanhado por um inspector fanfarrão e bem humorado. Passado um quarto de hora, chegámos a casa da Sr.ª Cecil Forrester. A criada pareceu surpreendida com uma visita tão fora de horas. A Sr.ª Cecil Forrester saíra nessa noite, explicou ela, e só devia chegar muito tarde. A Menina Morstan, porém, estava na sala; e assim, para a sala me dirigi, com o cofre na mão, tendo deixado o amável inspector na carruagem.
Ela estava sentada junto da janela aberta e tinha um vestido de tecido branco e diáfano, com um toque de escarlate no pescoço e na cintura. A luminosidade suave de um candeeiro com quebra-luz descia sobre ela, recostada numa cadeira de verga, espalhava-se sobre o seu rosto grave e doce, e fazia brilhar débeis reflexos metálicos sobre os preciosos caracóis do seu cabelo luxuriante. Um braço e uma mão suspensos ao lado da cadeira e toda a sua pose traduziam uma absorta melancolia. Ergueu-se ao som dos meus passos e o seu pálido rosto corou ligeiramente de surpresa e satisfação.
- Ouvi chegar uma carruagem - disse ela. - Pensei que a Sr.ª Forrester tivesse voltado muito cedo, mas não sonhava que pudesse ser o senhor. Que notícias me traz?
- Trouxe-lhe uma coisa melhor que notícias - respondi, pousando o cofre sobre a mesa e falando com jovialidade e exuberância, embora sentisse um peso no coração. - Trouxe-lhe uma coisa que vale mais que todas as notícias do mundo. Trouxe-lhe uma fortuna.
Ela olhou para o cofre de ferro.
- Então aquilo é o tesouro? - perguntou com bastante frieza.
- Sim, é o grande tesouro de Agra. Metade pertence-lhe a si e a outra metade a Thaddeus Sholto. Ficarão com algumas centenas de milhares cada um. Pense nisso! Uma renda anual de dez mil libras. Haverá poucas jovens senhoras mais ricas em Inglaterra. Não é maravilhoso?
Creio que devo ter exagerado a minha alegria, e ela detectou uma certa insinceridade nas minhas felicitações, pois vi-a erguer um pouco as sobrancelhas e olhar para mim curiosamente. Acabou por dizer:
- Se o tenho, devo-o a si.
- Não, não - retorqui -, não a mim mas ao meu amigo Sherlock Holmes. Mesmo que muito o desejasse, nunca teria conseguido seguir uma pista que chegou a pôr à prova o gênio analítico do meu companheiro. De facto, quase que a íamos perdendo no último momento.
- Queira sentar-se e conte-me tudo, Dr. Watson - disse ela.
Contei resumidamente o que sucedera desde a última vez que a vira. A maneira como Holmes resolvera prosseguir a investigação, a descoberta da Aurora, o aparecimento de Athelney Jones, a nossa expedição ao entardecer e a agitada perseguição no Tamisa. Com os lábios entreabertos e um brilho no olhar ouviu a minha narrativa das aventuras. Quando falei no dardo que por pouco não nos atingira, ficou tão pálida que receei que estivesse prestes a desmaiar.
- Não é nada - disse ela, quando me apressei a trazer-lhe um copo com água. - Já estou bem. Foi um choque para mim saber que fiz os meus amigos correrem um perigo tão terrível.
- Agora está tudo acabado - retorqui. - Não foi nada. Não lhe contarei mais pormenores tristes. Pensemos em coisas mais alegres. Há o tesouro. Que poderá ser mais alegre que isso? Consegui autorização para o trazer comigo, pensando que lhe interessaria ser a primeira a vê-lo.
- Sim, interessa-me muito - disse ela. Mas não havia impaciência na sua voz. Sem dúvida que considerara ser pouco gentil da sua parte mostrar-se indiferente perante um tesouro que custara tanto a reaver.
- Que bonito cofre! - exclamou, inclinando-se sobre ele. - É indiano, não é?
- Sim, é ferro forjado de Benares.
- E tão pesado! - voltou a exclamar, tentando erguê-lo. - Só o cofre deve valer bastante. Onde está a chave?
- Small deitou-a ao Tamisa - respondi. - Tenho de usar o atiçador da Sr.ª Forrester.
O cofre tinha à' frente um grosso e largo ferrolho com a forma de um buda sentado. Introduzi por baixo a extremidade do atiçador e empurrei-o para baixo como uma alavanca. O ferrolho abriu-se com um estalido sonoro. Com os dedos trémulos ergui a tampa. Ficámos ambos a olhar estupefactos. O cofre estava vazio!
Não admirava que fosse pesado. As paredes de ferro tinham dois centímetros de espessura a toda a volta. Era maciço, bem feito, sólido, construído para transportar objectos de grande valor, mas lá dentro nem uma migalha de metal precioso ou jóias. Estava absoluta e completamente vazio.
- O tesouro desapareceu - disse a Menina Morstan calmamente.
Ao ouvir estas palavras e ao compreender o que significavam, senti que uma enorme sombra abandonara a minha alma. Não sabia quanto pesara dentro de mim o tesouro de Agra até este momento em que fora removido. Era egoísmo, sem dúvida, deslealdade, errado, mas a única coisa que sentia era que desaparecera a barreira de ouro que nos separava.
- Graças a Deus! - exclamei do fundo do meu coração. Ela olhou-me com um sorriso rápido e inquiridor.
- Por que diz isso? - perguntou.
- Porque é outra vez possível tê-la a si - disse eu, pegando-lhe na mão. Ela não a retirou. - Porque a amo, Mary, tão sinceramente como nunca um homem amou uma mulher. Porque este tesouro, estas riquezas, selaram os meus lábios. Agora que desapareceram posso dizer-lhe como a amo. Foi por isso que disse: graças a Deus.
- Então também digo: graças a Deus - murmurou, enquanto eu a puxava para mim.
Quem perdera um tesouro? Soube, nessa noite, que eu tinha ganho um.
Capítulo XII - A Estranha História de Jonathan Small
Muito paciente era o inspector que ficara na carruagem, pois só regressei bastante tempo depois. O seu rosto ensombrou-se quando lhe mostrei o cofre vazio.
- Lá se vai a recompensa - disse tristemente. - Sem dinheiro não há recompensa. O trabalho desta noite teria valido umas dez libras para cada um, Sam Brown e eu, se o tesouro ai estivesse.
- O Sr. Thaddeus Sholto é um homem muito rico disse eu. - Providenciaremos para que sejam recompensados, com ou sem tesouro.
O inspector, porém, abanou a cabeça desconsoladamente.
- A coisa correu mal - insistiu. - E o Sr. Athelney Jones também vai achar o mesmo.
Verificou-se que a sua previsão fora correcta, pois o detective ficou pasmado quando, em Baker Street, lhe mostrei o cofre vazio. Ele, Holmes e o prisioneiro acabavam de chegar, pois tinham mudado de ideias e decidido não passar primeiro pela esquadra para participar a ocorrência. O meu companheiro instalou-se na cadeira de braços, com a sua habitual expressão de indiferença, e Small sentou-se imperturbavelmente à sua frente, com a perna de pau assente sobre a outra. Quando mostrei o cofre vazio, recostou-se na cadeira e desatou a rir.
- Isto é obra sua, Small - disse Athelney Jones, irritado.
- Sim, escondi-o num sítio onde nunca lhe porão as mãos - afirmou exultantemente. - O tesouro é meu, e se não posso ficar com ele também ninguém há-de ficar. Digo-lhe que nenhum homem vivo tem direito a ele, a não ser eu e três homens que estão presos em Andamão. Sei que nem eu nem eles vamos poder usá-lo. Tudo o que fiz fi-lo tanto por eles quanto por mim. O sinal dos quatro esteve sempre presente.
Bem, sei que eles gostariam que tivesse feito exactamente o que fiz: deitar o tesouro ao Tamisa em vez de o deixar ir para os parentes ou amigos de Sholto e Morstan. Não foi para os tornar ricos que tratámos da saúde a Achmet. Encontrarão o tesouro onde estão a chave e o pequeno Tonga. Quando vi que a vossa lancha nos ia apanhar, pus o tesouro em lugar seguro. Desta vez ficam sem gorjeta.
- Está a intrujar-nos, Small - disse Athelney Jones, com ar carrancudo. - Se quisesse atirar o tesouro ao Tamisa, era mais fácil atirar o cofre e tudo.
- Mais fácil para mim atirá-lo e mais fácil para vocês irem lá buscá-lo - retorquiu, olhando de lado maliciosamente. - Um homem suficientemente esperto para me apanhar também era suficientemente esperto para tirar uma caixa de ferro do fundo do rio. Agora que ficou tudo espalhado num espaço de mais ou menos oito quilómetros vai ser difícil. Custou-me fazê-lo. Fiquei desvairado quando começaram a perseguir-nos. Mas agora não vale a pena estar com lamentações. Já tive muitos altos e baixos na vida, mas aprendi que não vale a pena chorar sobre leite derramado.
- Trata-se de um assunto muito sério, Small – disse o detective. - Se tivesse colaborado com a justiça, em vez de a impedir desta maneira, poderia ter melhor sorte no seu julgamento.
- Justiça! - resmungou o ex-condenado . - Uma linda justiça! A quem pertence o tesouro, senão a nós? Onde está a justiça se eu desistir dele a favor de quem nunca o mereceu? Vejam como eu o mereço! Vinte longos anos. naquele atoleiro de febres, todo o dia a trabalhar nos pântanos, toda a noite fechado nas barracas imundas dos condenados, mordido por mosquitos, atormentado por sezões, maltratado por todos os malditos polícias pretos que gostam de se vingar dos brancos. É por isso que mereço o tesouro de Agra.
E falam-me de justiça só porque não admito que tenha pago este preço para que outro se aproveite do tesouro! Preferia ser enforcado várias vezes, ou levar com um dardo do Tanga, que viver numa cela de condenado e saber que outro homem está muito bem instalado num palácio com o dinheiro que devia ser meu.
Small deixara cair a sua máscara de estoicismo, e tudo isto saíra num violento turbilhão de palavras. Os seus olhos chamejavam, as algemas tilintavam com o movimento apaixonado das suas mãos. Consegui perceber, ao ver a fúria e a paixão do homem, como não era infundado ou pouco natural o terror que se apossara do major Sholto quando soube que aquele condenado andava atrás dele.
- Esquece-se que nada sabemos de tudo isso - disse Holmes tranquilamente. - Não ouvimos a sua história e não podemos dizer até que ponto a justiça estava originalmente do seu lado.
- Bem, o senhor falou-me muito sinceramente embora veja que tenho de lhe agradecer o facto de ter estas algemas nos pulsos. Mas não lhe guardo rancor. É tudo muito justo. Se quer ouvir a minha história não deixarei de a contar. Juro por Deus que o que lhe vou dizer é a verdade, cada palavra. Se fizer o favor, ponha o copo aqui ao meu lado, para eu beber quando tiver sede.
»Sou de Worcestershire, nasci perto de Pershore. Poderá encontrar aí muitos Smalls. Pensei muitas vezes ir até lá mas a verdade é que nunca fui muito bem-visto pela família e duvido que gostassem de me ver. Eram todos trabalhadores, gente que ia à igreja, pequenos agricultores, conhecidos e respeitados na região, enquanto eu sempre fui um bocado pirata. Por fim, quando tinha para aí dezoito anos, não lhes causei mais problemas, pois arranjei umas complicações com uma rapariga e só consegui safar-me alistando-me como soldado num regimento que ia partir para a Índia.
»Mas não estava destinado a ser soldado. Mal aprendera a marchar e a pegar na arma, quando me deu na cabeça ir nadar no Ganges. Felizmente, o sargento da companhia, John Holder, estava também na água e era um grande nadador. Um crocodilo apanhou-me a meio do rio e arrancou-me a perna direita, como se fosse um cirurgião, mesmo acima do joelho. Com o choque e a perda de sangue desmaiei e ter-me-ia afogado se Holder não me trouxesse para terra. Estive cinco meses no hospital e, quando saí de lá a coxear, com uma perna de pau, vi-me inválido para o exército ou para qualquer outra ocupação activa.
»A vida corria-me mal nessa altura, como podem imaginar, pois era um aleijado inútil, apesar de ainda não ter vinte anos. Mas a minha desgraça cedo se tornou uma bênção. Um homem chamado Abel White, que fora para a Índia como plantador de indigueiros, queria um capataz que vigiasse os nativos e os fizesse trabalhar. Era amigo do nosso coronel, que se interessara por mim depois do acidente. Encurtando a história: o coronel recomendou-me muito para o lugar, e, como a maior parte do trabalho era para ser feita a cavalo, a minha perna não era um grande obstáculo, pois ainda tinha bastante firmeza para me manter bem montado na sela. O que tinha de fazer era andar pela plantação, vigiar os homens enquanto trabalhavam e dizer quais eram os preguiçosos. O pagamento era justo. O patrão ia muitas vezes à minha barraca e fumava um cachimbo comigo, pois lá os homens brancos sentem uma simpatia uns pelos outros como aqui não se vê.
»Bem, a sorte não esteve durante muito tempo do meu lado. De repente, sem que ninguém o esperasse, rebentaram grandes motins contra nós. A dada altura a Índia estava tão tranquila e em paz, segundo parecia, como Surrey ou Kent; um mês depois havia dois mil malditos indianos amotinados: o país era um perfeito inferno.
Claro que os senhores sabem tudo acerca disso, mais do que eu, parece-me, visto que não sou dado a leituras. Só sei o que vi com os meus próprios olhos. A nossa plantação ficava num lugar chamado Muttra, perto da fronteira com as províncias do noroeste. Durante muitas noites o céu esteve iluminado com os incêndios das casas, e todos os dias havia pequenos grupos de europeus que passavam através da propriedade com mulheres e filhos, a caminho de Agra, onde estacionavam as tropas mais próximas. O Sr. Abel White era um homem teimoso. Tinha metido na cabeça que o caso estava a ser exagerado e que tudo acabaria de repente como começara. Sentava-se na varanda, a beber uísques e a fumar charutos, enquanto na região todos se agitavam contra ele. Claro que ficámos a seu lado, eu e Dawson, que, com a mulher, fazia a contabilidade e tratava da casa. Bem, um belo dia aconteceu. Eu tinha estado fora numa plantação distante, e voltava calmamente para casa, ao entardecer, quando reparei numa coisa estranha no fundo de uma ravina escarpada. Desci para ver o que era. Senti o sangue gelar-se-me quando vi a mulher de Dawson toda dilacerada e meio devorada por chacais e cães. Um pouco mais adiante, sobre a estrada, estava estendido o próprio Dawson, morto, com um revólver descarregado na mão. Quatro soldados hindus estavam também mortos, estendidos à sua frente. Parei o cavalo, sem saber' que caminho seguir; mas, nesse momento, vi um fumo espesso a sair da casa de Abel White e as chamas a começar a consumir o telhado. Compreendi que já não podia valer ao meu patrão, que seria um suicídio intrometer-me no assunto. Donde estava podia ver centenas de malditos soldados hindus com os seus casacos vermelhos, a dançar e a gritar à volta da casa.
Alguns deles dispararam na minha direcção, zumbindo meia dúzia de balas rentes à minha cabeça. Desatei a fugir através dos campos de arroz e, de madrugada, estava a salvo dentro dos muros de Agra.
»Como depois se viu, também ali, no entanto, não havia grande segurança. Todo o país estava excitado como um enxame de abelhas. Onde os ingleses conseguiam juntar-se em pequenos grupos, apenas dominavam o terreno que' podiam defender com as suas armas. Em qualquer outro sítio eram fugitivos desesperados. Era uma luta de milhares contra centenas; e o mais cruel disto tudo era que aqueles homens contra quem lutávamos, a pé, a cavalo e artilheiros, eram as tropas por nós escolhidas, ensinadas, treinadas, usando as nossas armas e tocando os nossos cornetins. Em Agra estavam o terceiro regimento de fuzileiros de Bengala, alguns sikhs, duas companhias de cavalaria e uma bateria de artilharia. Um corpo voluntário de empregados de escritório e comerciantes fora formado. Nele me incorporei, com perna de pau e tudo. Saímos para defrontar os rebeldes em Julho e fizemo-los recuar durante algum tempo, mas acabou-se-nos a pólvora e tivemos de regressar à cidade.
»De todo o lado, só nos chegavam más noticias, o que não admira, porque se olhar para o mapa verá que estávamos mesmo no meio daquilo tudo. Lucknow fica a cerca de cento e cinquenta quilômetros para leste, Cawnpore mais ou menos à mesma distância para sul. Por todo o lado só havia tortura, assassínio e ultrajes.
»Agra é uma grande cidade onde pululam fanáticos e ferozes adoradores do demónio de todas às espécies. Os nossos poucos homens perdiam-se nas ruas estreitas e tortuosas. O nosso chefe, então, atravessou o rio e ocupou o velho forte de Agra.
Não sei se algum dos cavalheiros já leu alguma coisa ou ouviu falar do velho forte. Era um sítio muito estranho... o mais estranho que conheço, e já estive em lugares bem esquisitos. É enorme, acho que deve medir imensos acres. Há uma parte moderna, onde ficava toda a nossa guarnição, mulheres, crianças, lojas, e tudo o mais. Ainda sobrava espaço. Mas a parte moderna é muito mais pequena que a zona antiga, onde ninguém vai, e que é deixada aos escorpiões e às centopeias. Está cheia de salas vazias, passagens retorcidas, corredores às voltas, de modo que é fácil uma pessoa perder-se ali. Por isso, quase nunca ia lá ninguém, embora uma vez por outra um grupo com archotes se aventurasse a explorar a zona.
»O rio passa à frente do velho forte e protege-o, mas dos lados e atrás há muitas portas que têm de ser guardadas, tanto na zona antiga como na ocupada pelas nossas tropas. Tínhamos poucos homens para ficar de sentinela e manejar as armas. Era-nos, por isso, impossível montar uma guarda eficiente em cada um dos inúmeros portões. O que fizemos foi organizar uma casa da guarda central, no meio do forte, e deixar cada portão a cargo de um homem branco e dois ou três nativos. Fui escolhido para guardar durante algumas horas da noite uma pequena porta isolada no lado sudoeste do edifício. Dois soldados sikhs foram colocados sob o meu comando; e recebi ordens para disparar se alguma coisa corresse mal; logo receberia auxílio da guarda central. Mas como a guarda estava a uns bons cento e cinquenta metros, e como o espaço que nos separava era um labirinto de passagens e corredores, duvidava muito que eles chegassem a tempo de ser úteis no caso de um ataque.
»Bem, estava bastante orgulhoso por me terem dado este pequeno posto de comando, pois era um recruta inexperiente e, ainda por cima, sem uma perna.
Durante duas noites fiz a guarda com os meus nativos. Eram tipos altos, com ar feroz, chamados Mahomet Singh e Abdullah Khan, ambos velhos combatentes que tinham pegado em armas contra nós em Chilian Wallah. Sabiam inglês bastante bem, mas pouco falavam comigo. Preferiam ficar juntos e tagarelar toda a noite na sua língua sikh. Eu costumava ficar do lado de fora da porta, a olhar para o rio que serpenteava lá 'em baixo e para as luzes trémulas da grande cidade. O rufar dos tambores, o ressoar dos gongos, os gritos e uivos dos rebeldes, bêbedos com ópio e barulho, eram o suficiente para nos lembrar durante toda a noite dos nossos perigosos vizinhos do outro lado do rio. De duas em duas horas, o oficial da noite costumava fazer uma ronda por todos os postos para verificar se estava tudo em ordem.
»Na minha terceira noite de sentinela estava escuro e caía uma chuva miudinha. Era muito aborrecido estar ali no portão com aquele tempo, uma série de horas. Fiz várias tentativas para que os sikhs falassem comigo, mas não consegui. Às duas da manhã passou a ronda e quebrou por um momento a monotonia da noite. Vendo que os meus companheiros não queriam conversar, tirei o cachimbo e pousei o mosquete para acender um fósforo. Num instante, os dois sikhs atiraram-se a mim. Um deles pegou na arma e apontou-a à minha cabeça, enquanto o outro encostava uma grande faca à minha garganta e jurava entre dentes que a cortaria se eu desse um passo.
»O meu primeiro pensamento foi que aqueles tipos estavam combinados com os rebeldes e que aquilo era o começo de um assalto. Se a porta que guardávamos caísse na mão dos hindus, o forte seria tomado e as mulheres e as crianças tratadas como em Cawnpore.
Talvez os cavalheiros pensem que estou a mentir, mas dou-lhes a minha palavra que, quando pensei naquilo e embora sentisse a ponta da faca na garganta, abri a boca para dar um grito, nem que fosse o último, que servisse de aviso para a guarda principal. O homem que me segurava pareceu ler os meus pensamentos, pois, quando eu ia a gritar, murmurou: «Não faça barulho. O forte está em segurança. Não há rebeldes deste lado do rio. Parecia estar a falar verdade, e eu sabia que, se levantasse a voz, era um homem morto. Estava escrito nos olhos castanhos daquele tipo. Esperei, portanto, em silêncio, para saber que queriam eles de mim.
»«Ouça bem, sahib», disse o mais alto e violento dos dois, o que se chamava Abdullah Khan. «Ou fica do nosso lado ou temos de o silenciar para sempre. A coisa é muito importante para hesitarmos. Ou se põe de alma e coração do nosso lado, jurando pela cruz dos cristãos, ou o seu corpo vai parar esta noite ao rio, e nós passamo-nos para o lado dos nossos irmãos do exército rebelde. Não há outra escolha. Que prefere, a vida ou a morte? Só lhe damos três minutos para decidir, porque o tempo vai passando e tudo tem de ser feito antes que volte a ronda.»
»«Como posso decidir?», disse eu. «Ainda não me disseram que querem de mim. Mas se é alguma coisa contra a segurança do forte não contem comigo. Podem matar-me à vontade.»
»«Não é nada contra o forte», respondeu ele. «Só lhe pedimos para fazer o mesmo que os seus compatriotas, ao virem para este país. Pedimos-lhe para se tornar rico. Se vier connosco esta noite, juramos-lhe, pelos três votos que nenhum sikh alguma vez quebrou, que terá a sua justa parte do saque. Um quarto do tesouro será seu. Não poderia ser mais justo.»
»«Mas que tesouro é esse?», perguntei. «Quero ficar rico, tal como vocês, mas têm de me mostrar como isso é possível.»
»«Jura, então», disse ele, «pela alma do seu pai, pela honra da sua mãe, pela cruz da sua fé, que não levantará um dedo nem falará uma palavra contra nós, quer agora, quer depois?»
»«Juro», respondi, «desde que o forte não corra perigo» »«Então, eu e o meu camarada juramos-lhe que ficará com um quarto do tesouro. Vamos dividi-lo em partes iguais entre nós quatro»
»«Mas só somos três», disse eu.
»Não. Dost Akbar tem de receber uma parte. Podemos contar-lhe a história enquanto esperamos por eles. Fica no portão, Mahomed Singh, e dá sinal quando chegarem. A coisa é a seguinte, e conto-lhe porque sei que fizemos uma jura sagrada e que posso confiar em si. Se fosse um hindu. mentiroso, mesmo que jurasse por todos os seus falsos deuses, a faca não deixaria de ficar manchada com o seu sangue, e o seu corpo seria lançado ao rio. Mas os Sikhsconhecem os Ingleses, e os Ingleses conhecem os Sikhs. Ouça com atenção o que vou dizer,»
»«Nas províncias do norte há um rajá que é muito rico, ainda que as suas terras sejam pequenas. Herdou muita coisa do pai e ainda mais conseguiu-o ele, pois é um homem sem escrúpulos e, além disso, acumula o seu ouro mais do que o gasta. Quando rebentaram os motins, quis ficar de boas relações tanto com o leão como com o tigre - com os soldados hindus e com os ingleses. Cedo, porém, lhe pareceu que chegara o fim dos homens brancos, pois por todo o lado só ouvia falar da sua morte e derrota. No entanto, como era um homem cauteloso, fez planos para que, acontecesse o que acontecesse, ficasse com pelo menos metade do seu tesouro. O ouro e a prata guardou-os nas caves do palácio, mas as pedras preciosas e as melhores pérolas pô-las num cofre de ferro, entregando-o a um servo fiel que, disfarçado de mercador, o devia levar para o forte de Agra.
Ali o conservaria até que a paz voltasse ao país. Assim, se os rebeldes vencessem, ficaria com o seu dinheiro, mas, se fossem os ingleses, as suas jóias estariam seguras. Depois de dividir o tesouro, tomou partido pelos hindus, visto que eram os mais fortes na região. Ao fazer isto, repare, sahib, os seus bens passaram a pertencer justamente àqueles que se conservaram fiéis à nossa causa.»
»«Esse falso mercador, que viaja sob o nome de Achmet, está agora na cidade de Agra e deseja entrar no forte. Tem como companheiro de viagem o meu irmão de leite Dost Akbar, que conhece o seu segredo. Dost Akbar prometeu trazê-lo esta noite para o forte e vem por este portão. Devem estar a chegar, e aqui me encontrarão a mim e a Mahomet Singh à espera deles. O sitio é isolado, ninguém saberá da sua vinda. O mercador Achmet desaparecerá da face da Terra, mas o grande tesouro do rajá será dividido entre nós. Que diz a isto, sahib?»
»Em Worcestershire a vida de um homem é considerada uma coisa sagrada; mas é muito diferente quando se está rodeado de fogo e sangue, habituado a encontrar a morte a cada esquina. Que o mercador Achmet vivesse ou morresse, não me interessava, mas ao ouvir falar do tesouro fiquei entusiasmado, pensando no que poderia fazer com ele na minha terra, e como a minha gente ficaria espantada ao ver este pária voltar com os bolsos cheios de moedas de ouro. Já me tinha decidido. Abdullah Khan, porém, pensando que eu hesitava, insistiu no assunto.
»«Veja, sahib», disse ele, «que, se esse homem for apanhado pelo comandante, será enforcado ou fuzilado, e as jóias apreendidas pelo Governo, de modo que ninguém lucrará com isso. Mas, se formos nós a apanhá-lo, por que não havemos de fazer o resto?
As jóias ficarão tão bem nas nossas mãos como nos cofres do regimento. Haverá o suficiente para nos tornar homens muito ricos. Ninguém ficará a saber, pois aqui estamos isolados de toda a gente. Não poderia haver melhores condições. Diga lá, sahib, se está do nosso lado ou se temos de o considerar um inimigo..
»«Estou do vosso lado de alma e coração», respondi. »«Está bem», retorquiu ele, entregando-me a minha arma. «Vê que confiamos em si, pois o seu juramento, tal como o nosso, não é para ser quebrado. Agora só temos de esperar pelo meu irmão e pelo mercador.»
»«Mas o seu irmão sabe o que vamos fazer?», perguntei.
»«Foi ele que planeou tudo. Vamos ter com Mahomet Singh ao portão..
»A chuva continuava a cair, pois estávamos no princípio da estação húmida. No céu deslizavam espessas nuvens cinzentas. Pouco se via à nossa frente. Diante do portão havia um fosso profundo, mas alguns sítios estavam secos, e atravessava-se facilmente. Era estranho para mim estar ali, com aqueles dois punjabees (nativos da província indiana da Punjab), à espera de um homem que caminhava para a sua própria morte.
»De repente, avistei a luz velada de uma lanterna do outro lado do fosso. Desapareceu, por trás dos montes de terra do fosso, e depois surgiu de novo, aproximando-se lentamente de nós.
»«Vêm aí!», exclamei.
»«Pergunte quem é, sahib, como é costume», sussurrou Abdullah. «Não lhes meta medo. Mande-os entrar connosco, e nós tratamos do resto, enquanto fica de guarda. Esteja preparado para descobrir a lanterna para vermos se é realmente o nosso homem.»
»A luz continuava a avançar, parando por vezes, até que consegui ver dois vultos do outro lado do fosso. Deixei-os descer o terreno inclinado, chapinhar na lama e aproximar-se um pouco mais do portão, antes de os interpelar. »
»«Quem vem lá», disse eu em voz baixa.
»«Amigos>>, foi a resposta. Descobri a lanterna e voltei a luz para eles. O primeiro era um enorme sikh, com uma barba preta que descia quase até à faixa da cintura. Nunca vira homem tão alto. O outro era um tipo um pouco gordo, com um grande turbante amarelo e, na mão, uma trouxa feita com um xaile. Parecia cheio de medo, tremiam-lhe as mãos como se estivesse atacado por paludismo, e voltava a cabeça para a esquerda e para a direita, com dois olhinhos brilhantes a pestanejar, como um rato que se tivesse aventurado a sair do seu buraco. Arrepiei-me ao pensar que o iam matar, mas lembrei-me do tesouro e o meu coração ficou duro que nem uma pedra. Quando viu que eu era branco, soltou uma exclamação de alegria e correu na minha direcção.
»«Proteja-me, sahib», disse ele, arquejante, «proteja este infeliz mercador Achmet. Viajei através de Rajpootana para procurar abrigo no forte de Agra. Fui roubado, espancado e ultrajado por ser amigo dos Ingleses. Bendita seja esta noite em que me encontro outra vez em segurança. Eu e os meus haveres.»
»«Que traz na trouxa?», perguntei.
»«Um cofre de ferro», respondeu ele, «que contém meia dúzia de coisas de família sem valor, mas que muito me custaria perder. Mas não sou um mendigo; e vou recompensá-lo, jovem sahib, e ao seu comandante também, se ele me der a protecção que peço»
»Não consegui falar durante mais tempo com o homem. Ao olhar para a sua cara gorda e assustada, parecia-me difícil matá-lo a sangue-frio. Era melhor acabar com aquilo.
»«Levem-no à guarda principal», disse eu. Os doissikhs ladearam-no, o maior seguiu-os, e todos entraram pelo portão escuro. Nunca um homem estivera tão rodeado pela morte.
Fiquei junto ao portão com a lanterna.
»Podia ouvir o ruído dos passos deles através dos corredores desertos. De repente, os passos cessaram, escutei vozes, arrastar de pés e o som de socos. Passado um momento, para meu horror, ouvi apressadas passadas vindo na minha direcção e a respiração ruidosa de um homem a correr. Voltei a lanterna para o comprido corredor: lá vinha o homem gordo, a correr desalmadamente, com uma mancha de sangue sobre a cara. Imediatamente atrás, saltando como um tigre, vinha o grande sikh de barba negra, com uma faca a brilhar na mão. Nunca vira um homem correr tão depressa como aquele mercador. Distanciava-se do sikh e vi logo que, se passasse por mim e saísse, conseguiria escapar. Senti pena dele, mas, ao pensar no tesouro, endureceu-se-me o coração. Quando passou por mim atirei-lhe a espingarda para as pernas, e ele deu duas cambalhotas como um coelho ferido de morte. Antes que conseguisse levantar-se, o sikh estava em cima dele e dava-lhe duas facadas. O homem não soltou um gemido nem mexeu um músculo, ficando estendido onde caíra. Acho que deve ter partido o pescoço ao cair. Como vêem, senhores, cumpro a minha promessa. Estou a contar-lhes tudo exactamente como aconteceu, quer isso me favoreça ou não.
Inclinou -se e estendeu as mãos algemadas para pegar no uísque com água que Holmes lhe preparara. Confesso que sentia agora a maior aversão por aquele homem, não só por causa do assassínio a sangue-frio em que estivera envolvido, mas principalmente pelo ar despreocupado com que o narrava. Não sabia que castigo lhe estava reservado, mas senti que não teria pena dele. Sherlock Holmes e Jones sentaram-se com as mãos sobre os joelhos, profundamente interessados na história, mas com a mesma indignação estampada nos rostos.
Jonathan Small deve ter percebido isso, pois a sua voz e maneira de proceder passaram a revelar uma certa desconfiança.
- É tudo horrível, sem dúvida - disse ele. - Gostava de saber quantos tipos, no meu lugar, recusavam partilhar o tesouro, quando o que os esperava era a goela cortada. Além disso, a partir do momento em que ele entrara no forte, era a minha vida ou a dele. Se tivesse fugido, tudo se vinha a saber, e eu seria levado a tribunal marcial e provavelmente fuzilado. As pessoas não eram muito brandas numa altura daquelas.
- Continue a sua história - disse Holmes secamente.
- Bem, trouxemo-lo para dentro, Abdullah, Akbar e eu. E era bem pesado para a altura que tinha. Mahomet Singh ficou de guarda à porta. Levámo-lo para um sítio que ossikhs tinham já preparado. Ficava a uma certa distância, junto de um corredor que dava para uma grande sala vazia, cujas paredes de tijolo estavam a cair aos bocados. O chão de terra abatera num sítio, formando uma sepultura natural, e deixámos ali o mercador Achmet, depois de o cobrir com tijolos. Feito isto, voltámos para ver o tesouro.
»Estava onde ele o deixara cair quando fora atacado pela primeira vez. O cofre era aquele que agora ali está aberto sobre a mesa. Havia uma chave presa por um cordão de seda à pega de cima. Abrimo-lo. A luz da lanterna cintilou sobre uma colecção de pedras preciosas como aquelas de que falam as histórias e com que sonhei quando era rapazinho, em Pershore. O brilho quase que nos cegava. Depois de as admirarmos, tirámo-las todas para fora e fizemos uma lista. Havia cento e quarenta e três diamantes de primeira água, incluindo um a que chamaram, acho eu, oGrande Mongol, e que dizem ser o segundo maior diamante que existe.
Havia também noventa e sete esmeraldas e cento e setenta rubis, alguns dos quais, porém, eram pequenos. Havia quarenta carbúnculos, duzentas e dez safiras, sessenta e uma ágatas, e uma grande quantidade de berilos, ónixes, olhos-de-gato, turquesas e outras pedras, de que não sabia os nomes exactos na altura, embora desde então esteja mais familiarizado com eles. Além disto, havia cerca de trezentas lindas pérolas, doze das quais num fio de ouro. A propósito; digo-lhes que este fio foi tirado do cofre e não estava lá quando o recuperei.
»Depois de termos contado tudo, voltámos a pôr o tesouro no cofre e levámo-lo para junto do portão. Mostrámo-lo a Mahomet Singh. Então, renovámos solenemente o nosso juramento, prometendo ficar sempre uns ao lado dos outros e fiéis ao nosso segredo. Concordámos em esconder o tesouro num local seguro, até que o país voltasse a estar em paz, dividindo-o então em partes iguais para cada um de nós. Não valia a pena dividi-lo naquela altura, pois se nos encontrassem com pedras de tal valor, isso levantaria suspeitas. Não havia privacidade no forte, nem qualquer lugar onde pudéssemos guardá-las. Levámos o cofre para a mesma sala onde enterráramos o corpo e, ali, debaixo de alguns tijolos da parede melhor conservada, fizemos um buraco onde pusemos o tesouro. Fixámos o lugar, e, no dia seguinte, desenhei quatro mapas, um para cada um de nós, e pus o sinal dos quatro em baixo, pois juráramos que cada um actuaria sempre em nome dos quatro para que ninguém ficasse prejudicado. Posso pôr a mão no peito e jurar que nunca quebrei este pacto.
»Bem, não vale a pena contar-lhes como terminou o motim indiano. Depois de Wilson tomar Deli e Sir Colin libertar Lucknow, a revolta estava sufocada. Chegaram novas tropas, e o próprio Nana Sahib escapuliu-se pela fronteira.
Uma coluna móvel, sob o comando do coronel Greathed, cercou Agra e fez fugir os hindus amotinados. Parecia que a paz voltava ao país, e nós os quatro esperávamos uma boa oportunidade para fugir com o tesouro. Rapidamente, porém, as nossas esperanças desfizeram-se, pois fomos presos pelo assassínio de Achmet.
»Aconteceu o seguinte. Quando o rajá pôs as jóias nas mãos de Achmet, fê-lo porque sabia que se tratava de um homem de confiança. Mas, no Oriente, as pessoas são muito desconfiadas. Por isso, o rajá disse a um segundo criado, de mais confiança ainda, para espiar o primeiro. Este segundo homem tinha ordens para nunca perder de vista Achmet, e seguiu-o como se fosse a sua sombra. Foi atrás dele naquela noite e viu-o entrar pelo portão. Claro que pensou que Achmet se refugiara no forte e, no dia seguinte, ele próprio pediu para ali ser admitido. Pareceu-lhe muito estranho não encontrar Achmet e falou nisso a um sargento, que fez chegar o assunto aos ouvidos do comandante. Depois de uma busca cuidadosa, o corpo foi encontrado. Assim, quando pensávamos que estávamos em segurança, fomos os quatro presos e julgados sob a acusação de assassínio: três de nós porque estivéramos de guarda ao portão naquela noite; o outro porque se sabia que acompanhara o homem assassinado. Nem uma palavra sobre as jóias foi dita durante o julgamento, pois o rajá fora deposto e expulso da Índia, de modo que ninguém as reclamara. O assassínio, porém, ficou provado, e não havia dúvida que todos nós estivéramos envolvidos nele. Os trêssikhs foram condenados a prisão perpétua, e eu à morte, embora a minha pena tivesse sido depois comutada, ficando igual às outras.
»Ficámos numa situação bastante curiosa.
Ali estávamos os quatro presos para toda a vida, mas conhecendo o segredo de um tesouro que nos permitiria viver num palácio se o pudéssemos usar. Era suficiente para um homem ficar desesperado ter de suportar os pontapés e os murros de um qualquer funcionariozinho, comer arroz e beber água, quando uma fortuna fantástica estava lá fora só à espera que a fossem buscar. Quase que fiquei louco; mas sempre fui teimoso, por isso aguentei e esperei que chegasse a minha vez.
»Por fim pareceu-me que chegara. Fui transferido de Agra para Madrasta, e dali para Blair, uma das ilhas Andamão. Havia muito poucos condenados brancos nesta colónia, e, como me comportara bem, passei a ser uma espécie de pessoa privilegiada. Deram-me uma barraca em Hope Town, que é uma terra pequena na encosta do monte Harriet, e deixavam-me andar à vontade. É um lugar horrível, onde se apanham febres, e, fora do terreno por nós desbravado, estava infestado de nativos canibais, sempre prontos a soprar-nos um dardo envenenado se tivessem oportunidade. Cavávamos, abríamos valas, trabalhávamos nas plantações de inhame, e havia mais uma dúzia de coisas para fazer, de modo que estávamos ocupados todo o dia; mas, ao fim da tarde, tínhamos algum tempo por nossa conta. Entre outras coisas, aprendi a preparar remédios para o cirurgião e fiquei com umas luzes acerca disso. Estava sempre à espera de uma oportunidade para fugir; mas as ilhas ficam a centenas de quilómetros de qualquer outra terra, e naqueles mares há pouco ou nenhum vento: era muito difícil sair dali.
»O cirurgião, o Dr. Somertone, era um tipo novo e folgazão. Os outros oficiais costumavam encontrar-se em casa dele, ao fim da tarde, para jogar às cartas. O gabinete onde costumava preparar os meus remédios era ao lado da sala de estar do médico, havendo uma pequena janela por onde os podia ver.
Muitas vezes, quando me sentia só, apagava o candeeiro e ficava ali a ouvi-los falar e a vê-los jogar. Também gosto de jogar às cartas e vê-los jogar era quase tão bom como ser eu próprio a jogar. Estavam lá o major Sholto, o capitão Morstan e o tenente Bromley Brown, que comandavam as tropas nativas, o cirurgião e dois ou três funcionários da prisão, batidos nas cartas e que eram muito matreiros a jogar. Faziam uma linda pandilha...
»Bem, reparei, logo numa coisa: os soldados costumavam perder sempre, e os civis ganhar. Vejam, não digo que houvesse batota, mas era assim. Os tipos da prisão pouco mais faziam que jogar às cartas, desde que estavam em Andamão, e conheciam até certo ponto o jogo uns dos outros, enquanto os militares jogavam só para passar o tempo e deitavam as cartas de qualquer maneira. Cada noite que passava, mais pobres os soldados ficavam, e quanto mais pobres ficavam mais queriam jogar. O major Sholto perdia muito. Costumava pagar com notas e ouro, a princípio, mas depois começou a passar promissórias sobre grandes quantias. Às vezes ganhava, o que o animava um bocado mas logo a sorte se virava outra vez contra ele. Andava todo o dia com um ar sombrio e começou a beber mais do que devia.
»Certa noite perdeu mais do que era costume. Eu estava sentado na minha barraca quando o vi e ao capitão Morstan a caminho dos seus alojamentos. Eram os dois muito amigos e nunca se separavam. O major estava furioso por causa das dívidas.
»«Está tudo acabado, Morstan», dizia ele, quando passaram ao pé da minha barraca. «Estou cheio de dívidas. Sou um homem arruinado.»
»«Que disparate, meu velho!», dizia o outro, dando-lhe palmadas nas costas. «Também tive dificuldades, mas...» Foi tudo o que ouvi, mas bastou para me pôr a pensar.
»Alguns dias depois, o major Sholto andava pela praia, e tive oportunidade de lhe falar.
»«Queria que me desse um conselho, major», disse eu. »«Está bem, Small, que é?», perguntou ele, tirando o charuto da boca.
»«Queria perguntar-lhe», disse eu, «quem é a pessoa indicada para se entregar um tesouro escondido. Sei onde está um que vale meio milhão e, como não posso ser eu a usá-lo, pensei que talvez o melhor fosse entregá-lo às autoridades, e, então, talvez me encurtassem a pena.»
»«Meio milhão, Small?», disse ele, ofegante, olhando para mim a ver se estava a falar a sério.
»«Isso mesmo, sir... em jóias e pérolas. Lá está para quem o for buscar. E o mais interessante é que o proprietário está exilado e não pode reavê-lo, por isso pertence ao primeiro que aparecer.»
»«Ao Governo, Small», balbuciou ele, «ao Governo.» Mas disse isto com hesitação, e percebi que o tinha na mão.
»«Acha, então, que devo informar o governador-geral», disse eu, tranquilamente.
»«Bem, bem, não deve precipitar-se, ou poderá arrepender-se. Conte-me tudo, Small. Ponha-me ao corrente dos factos.»
»Contei-lhe a história toda, com algumas pequenas modificações, para que não identificasse os locais. Quando acabei, ficou a pensar. Percebi pela sua expressão que se travava uma grande luta dentro dele.
»«Trata-se de um assunto muito importante, Small» , disse por fim. «Não deve falar nisto a ninguém, e, em breve, virei ter consigo..
»Dois dias depois, ele e o amigo, o capitão Morstan, vieram à minha barraca a altas horas da noite, com uma lanterna.
»«Quero que conte ao capitão Morstan aquela história, Small», disse ele.
»Repeti a história como antes a contara.
»«Parece ser verdade, hein?», disse ele. «Valerá a pena fazer alguma coisa?»
»O capitão Morstan abanou a cabeça afirmativamente.
»«Ouça lá, Small», disse o major. «Eu e aqui o meu amigo estivemos a falar sobre isto e concluímos que esse seu segredo não é, afinal, um assunto do Governo, mas uma coisa privada sobre a qual, claro, você pode decidir como achar melhor. Agora a questão é a seguinte: que preço pede por ele? Pode ser que nós resolvamos o assunto ou que, pelo menos, tentemos, se chegarmos a um acordo.» Ele queria falar calmamente, mostrando-se desinteressado, mas os olhos brilhavam-lhe de excitação e ganância.
»«Ora, em relação a isso, senhores». retorqui, tentando também mostrar-me calmo, mas sentindo-me tão excitado quanto ele, «um homem na minha situação só pode fazer uma exigência. Quero que me ajudem a recuperar a minha liberdade e que ajudem os meus três companheiros a recuperar a deles. Passarão a ser nossos sócios e ficarão com um quinto do tesouro para dividir pelos dois.»'
»«Rum!>>, fez ele. «Um quinto! Não é muito tentador,» »«Ficavam com cinquenta mil para cada um», disse eu. »«Mas como podemos dar-lhes a liberdade? Sabe muito bem que está a pedir uma coisa impossível.»
»«Não é impossível», respondi. «Já pensei em tudo até ao último pormenor. O único obstáculo à nossa fuga é que não conseguimos um barco adequado para a viagem, nem provisões que durem para tanto tempo. Há muitos iates em Calcutá ou Madrasta que serviriam para o que queremos. Traga um de lá. Embarcaremos durante a noite, e, se nos deixar em qualquer sítio da costa indiana, terá cumprido a sua parte do acordo.»
»«Se fosse só um», disse ele.
»«Todos ou nenhum», respondi. «Nós os quatro jurámos que faríamos sempre tudo juntos.»
»«Vê, Morstan», disse ele, «Small é um homem de palavra. Não trai os amigos. Acho que podemos confiar nele.»
»«É um negócio sujo», respondeu o outro. «Mas o dinheiro pagará o nosso trabalho.»
»«Bem, Small», disse o major, «acho que devemos tentar. Primeiro, claro, temos de verificar se a sua história é verdadeira. Diga-me onde está escondido o cofre, que eu peço uma licença e vou à Índia no barco mensal para tratar do assunto.»
»«Mais devagar», disse eu, mostrando-me tão calmo quanto ele estava excitado. «Tenho de ter o consentimento dos meus três camaradas. Já lhe disse que connosco ou são todos ou nenhum.»
»«Que disparatel», exclamou ele. «Que têm aqueles três pretos a ver com a nossa combinação?»
»«Pretos ou não», disse eu, «eles estão nisto comigo, e vamos todos juntos.»
»Bem a coisa acabou com um segundo encontro, em que Mahomet Singh, Abdullah Khan e Dost Akbar estiveram presentes. Falámos outra vez no assunto e, por fim, chegámos a um acordo. Daríamos aos dois oficiais plantas daquela parte do forte de Agra e marcaríamos o lugar da parede onde estava escondido o tesouro. O major Sholto iria à Índia verificar a nossa história. Se encontrasse o cofre, deveria deixá-lo lá, mandar um pequeno iate com provisões para a viagem que ancoraria a certa distância da ilha Rutland, ao qual chegaríamos pelos nossos meios. Finalmente, o major retomaria o seu serviço. O capitão Morstan pedia então uma licença, encontrar-se-ia connosco em Agra, e faríamos ali a divisão do tesouro, ficando ele com a sua parte e a do major. Tudo isto foi combinado sob os mais solenes juramentos que se possam imaginar. Fiquei toda a noite acordado e, pela manhã, tinha os dois mapas prontos, assinados com o sinal dos quatro - Abdullah, Akbar, Mahomet e eu próprio.
»Bem, cavalheiros, estou a cansá-los com a minha longa história e sei que o meu amigo, o Sr. Jones, está impaciente para me pôr atrás das grades.
Vou encurtar o mais que puder. O patife do Sholto foi para a Índia, mas nunca mais voltou. O capitão Morstan mostrou-me, passado pouco tempo, o nome dele numa lista de passageiros de um barco de correio. O tio morrera, deixando-lhe uma fortuna, e ele abandonara o exército; a verdade é que nos traíra. Morstan foi a Agra pouco depois e descobriu, como nós já esperávamos, que o tesouro desaparecera. O velhaco roubara-o sem cumprir sequer uma das condições sob as quais nós lhe reveláramos o segredo. Desde então vivi só para me vingar. Pensava nisso dia e noite. Tornou-se uma paixão intensa que se apoderou de mim. Não queria saber da lei, nem da forca. Fugir, perseguir Sholto, deitar-lhe as mãos ao pescoço: eram as únicas coisas em que pensava. Até o tesouro de Agra passou a ter menos importância para mim que a morte de Sholto.
»Bem, durante a minha vida desejei fazer muitas coisas e sempre o consegui. Mas levou bastante tempo até chegar a minha vez. Disse-lhes já que aprendera qualquer coisa de medicina. Certo dia, estava o Dr. Somertone de cama com uma febre, um grupo de condenados apanhou nas florestas um pequeno nativo de Andamão. Estava muito doente e fora para um sítio isolado para morrer. Tratei dele, embora fosse mau como as cobras, e, passados alguns meses, ficou bom e já conseguia andar. Tinha uma espécie de adoração por mim e não queria voltar para a floresta, andando sempre a rondar a minha barraca. Aprendi a falar um pouco da língua dele, o que o tornou ainda mais meu amigo.
»Tonga, pois assim se chamava, era um bom barqueiro e tinha uma grande canoa. Quando vi que me era fiel e faria o que quer que fosse para me servir, senti que chegara a minha oportunidade de fugir.
Falei-lhe nisso. Ficou de vir no barco, certa noite, a um velho cais que nunca era guardado, para me levar. Dei-lhe instruções para trazer várias cabaças com água e muito inhame, cocos e batatas-doces.»Era dedicado e fiel, aquele pequeno Tonga. Nunca ninguém teve um companheiro tão amigo. Na noite combinada trouxe o barco para o cais. Aconteceu, porém, estar ali um guarda da prisão, Pathan, um patife que nunca desperdiçava uma oportunidade para me insultar e bater. Jurara que me havia de vingar e chegara a minha vez. Era como se o destino o tivesse posto no meu caminho para que pudesse pagar a minha dívida antes de deixar a ilha. Ele estava na margem, de costas voltadas para mim e com a carabina ao ombro. Procurei uma pedra para lhe rachar a cabeça, mas não encontrei nenhuma.
»Tive então uma ideia para me apoderar da arma dele.
Sentei-me, na escuridão, e tirei a perna de pau. Com três grandes saltos caí sobre o homem. Chegou a levar a carabina ao ombro, mas bati-lhe em cheio na cabeça. Ainda se vê a marca da pancada na madeira. Fomos os dois parar ao chão, pois não consegui equilibrar-me; mas, quando me levantei, vi que ele ficara estendido, muito quieto. Fui para o barco. Passada uma hora estávamos no mar alto. Tonga trouxera todas as suas posses, armas e deuses. Entre outras coisas, tinha uma comprida cana de bambu e algumas esteiras de folhas de coqueiro, com as quais fiz uma espécie de vela. Durante dez dias andámos à deriva, confiando na sorte, até que fomos apanhados por um navio mercante que ia de Singapura para Jiddah, cheio de peregrinos malaios. Era uma gente estranha, mas eu e Tonga depressa nos habituámos a eles. Tinham uma grande qualidade: deixavam-nos em paz e não faziam perguntas.
»Bem, se lhes fosse contar todas as aventuras por que passámos, não me agradeceriam, pois teriam de me ouvir até ao nascer do Sol.
Andámos por aqui e por ali, pelo mundo fora, surgindo sempre qualquer coisa que nos afastava de Londres. Mas nunca perdi de vista o meu propósito. Sonhava com Sholto durante a noite. Matei-o mil vezes enquanto dormia. Por fim, há uns três ou quatro anos, chegámos a Inglaterra. Não foi difícil saber onde Sholto vivia, e tentei descobrir se tinha vendido o tesouro ou se ainda o possuía. Travei amizade com uma pessoa que me ajudou - não digo nomes, pois não quero comprometer ninguém -, e fiquei a saber que possuía ainda as jóias. Tentei aproximar-me dele de várias maneiras; mas era esperto e tinha dois pugilistas a guardá-lo, além dos dois filhos e do criado.
»Tive então uma ideia para me apoderar da arma dele.
Sentei-me, na escuridão, e tirei a perna de pau. Com três grandes saltos caí sobre o homem. Chegou a levar a carabina ao ombro, mas bati-lhe em cheio na cabeça. Ainda se vê a marca da pancada na madeira. Fomos os dois parar ao chão, pois não consegui equilibrar-me; mas, quando me levantei, vi que ele ficara estendido, muito quieto. Fui para o barco. Passada uma hora estávamos no mar alto. Tonga trouxera todas as suas posses, armas e deuses. Entre outras coisas, tinha uma comprida cana de bambu e algumas esteiras de folhas de coqueiro, com as quais fiz uma espécie de vela. Durante dez dias andámos à deriva, confiando na sorte, até que fomos apanhados por um navio mercante que ia de Singapura para Jiddah, cheio de peregrinos malaios. Era uma gente estranha, mas eu e Tonga depressa nos habituámos a eles. Tinham uma grande qualidade: deixavam-nos em paz e não faziam perguntas.
»Bem, se lhes fosse contar todas as aventuras por que passámos, não me agradeceriam, pois teriam de me ouvir até ao nascer do Sol.
Andámos por aqui e por ali, pelo mundo fora, surgindo sempre qualquer coisa que nos afastava de Londres. Mas nunca perdi de vista o meu propósito. Sonhava com Sholto durante a noite. Matei-o mil vezes enquanto dormia. Por fim, há uns três ou quatro anos, chegámos a Inglaterra. Não foi difícil saber onde Sholto vivia, e tentei descobrir se tinha vendido o tesouro ou se ainda o possuía. Travei amizade com uma pessoa que me ajudou - não digo nomes, pois não quero comprometer ninguém -, e fiquei a saber que possuía ainda as jóias. Tentei aproximar-me dele de várias maneiras; mas era esperto e tinha dois pugilistas a guardá-lo, além dos dois filhos e do criado.
»Um dia, porém, ouvi dizer que estava a morrer. Dirigi-me apressadamente para a casa, entrei no jardim, desvairado ao pensar que ele me ia escapar assim, e, quando olhei pela janela, vi-o deitado na cama, ladeado pelos filhos. Eu ia entrar e enfrentar os três, mas, ao olhar para ele, o queixo descaiu-lhe, e percebi que morrera. Nessa mesma noite entrei no quarto e procurei nos seus papéis qualquer indicação do local onde escondera as nossas jóias. Mas não encontrei nada e vim embora, mais furioso e amargurado que nunca. Antes de sair, pensei que se voltasse a encontrar os meus amigos sikhs, eles ficariam satisfeitos ao saber que deixara uma marca do nosso ódio; por isso, rabisquei o sinal dos quatro, como fizera no mapa, e prendi-o sobre o corpo. Era de mais que Sholto fosse para a sepultura sem nenhuma lembrança dos homens que roubara e enganara.
»Ganhávamos a vida, nessa altura, com a exibição do pobre Tonga nas feiras e em outros sítios. Era um canibal preto, comia carne crua e fazia a sua dança de guerra: ficávamos sempre com um chapéu cheio de dinheiro depois de um dia de trabalho.
Continuava a receber notícias de Pondicherry Lodge, mas durante anos nem sequer houve quaisquer notícias que interessassem, excepto que continuavam à procura do tesouro. Por fim, aconteceu o que há muito esperávamos. O tesouro fora encontrado. Estava por cima do laboratório de química do Sr. Bartholomew Sholto. Fui logo para lá e observei o local, mas não descobri como podia, com a minha perna de pau, subir tão alto. Soube, porém, da existência de um alçapão no telhado e, também, a que horas o Sr. Sholto jantava. Pareceu-me que podia fazer facilmente a coisa com a ajuda de Tonga. Enrolei-lhe uma comprida corda à volta da cintura e trouxe-o comigo. Trepava como um gato e depressa chegou ao telhado, mas, por azar, Bartholomew Sholto estava ainda na sala. Tonga pensou' que tinha sido muito esperto ao matá-lo, pois quando entrei, depois de subir pela corda, encontrei-o a pavonear-se de orgulho. Ficou muito surpreendido quando lhe bati com a ponta da corda e lhe chamei diabinho sanguinário. Peguei no cofre com o tesouro, desci-o pela janela e depois saí eu, tendo deixado o sinal dos quatro em cima da mesa para mostrar que as jóias, finalmente, estavam nas mãos daqueles que mais tinham direito a elas. Tonga, então, puxou a corda para cima, fechou a janela e saiu por onde entrara.
»Acho que não tenho mais nada para vos dizer. Ouvira um marinheiro falar da velocidade da Aurora, por isso pensei que seria uma boa lancha para fugirmos. Contratei o velho Smith, prometendo-lhe uma grande quantia se ele nos pusesse a salvo no navio. Ele sabia, sem dúvida, que havia ali qualquer negócio escuro, mas não conhecia o nosso segredo. Tudo isto é verdade e, se o disse aos senhores, não foi para se divertirem, pois não me fizeram nada de bom, mas porque acho que a melhor defesa para mim é não esconder nada.
Também quero que se saiba como o major Sholto me traiu e que estou inocente da morte do seu filho.
- Um depoimento notável - observou Sherlock Holmes. - Um desfecho adequado para um caso extremamente
interessante. Não há nada de novo para mim na última parte da sua história, excepto o facto de ter trazido uma corda sua. Isso não sabia. A propósito, julgava que Tonga perdera todos os seus dardos; no entanto, atirou-nos um no barco.
- Tinha-os perdido todos, sim senhor, excepto um que ficara dentro do canudo.
- Ah, claro - disse Holmes. - Não tinha pensado nisso.
- Há mais alguma coisa que queira saber? - perguntou o condenado afavelmente.
- Creio que não, obrigado - respondeu o meu companheiro.
- Bem, Holmes - disse Athelney Jones -, não o queria contrariar, sabemos que é um grande especialista do crime; mas o dever está acima de tudo. Já fui muito longe ao satisfazer os pedidos que você e o seu amigo me fizeram. Sentir-me-ei mais à vontade quando o nosso contador de histórias estiver bem seguro atrás das grades. A carruagem está à espera, e há dois inspectores lá em baixo. Agradeço-lhes muito o vosso auxílio. Claro que vão ser chamados a depor no julgamento. Muito boa noite.
- Boa noite, senhores - despediu-se Jonathan Small.
- Passe você primeiro, Small - disse o cauteloso Jones, ao saírem da sala. - Tenho de ter cuidado para que não me dê com a perna de pau, como fez ao homem das ilhas Andamão.
- Bem, chegámos ao fim do nosso pequeno drama - observei, depois de termos ficado algum tempo a fumar em silêncio. - Receio que tenha sido a última investigação em que tive oportunidade de estudar os seus métodos. A Menina Morstan deu-me a honra de me aceitar como futuro marido.
Holmes deu um suspiro de tristeza e disse:
- Temia que isso acontecesse e, na verdade, não posso felicitá-lo.
Fiquei um pouco magoado.
- Tem alguma razão para não estar satisfeito com a minha escolha? - perguntei.
- Claro que não. Penso que é uma das jovens senhoras mais encantadoras que já conheci. Ajudou-nos muito neste caso, agiu com inteligência. Veja como ela escolheu o mapa de Agra entre todos os papéis do pai. Mas o amor é uma coisa emocional, e tudo o que é emocional opõe-se à razão fria que considero acima de todas as coisas. Nunca me casarei, a não ser que mude de opinião.
- Espero - disse eu, rindo - que a minha opinião resista à prova. Mas parece cansado...
- Sim, é o resultado de toda esta actividade. Vou andar arrasado durante uma semana.
- É estranho - disse eu - como períodos daquilo a que noutro homem eu chamaria preguiça alternam em si com fases de enorme energia.
- Sim - respondeu Holmes -, há em mim as qualidades de um grande mandrião e também de uma pessoa muito activa. Lembro-me frequentemente daquelas palavras de Goethe:
Schade dass die Natur nur einen Mensch aus dir schuf, Den zum wurdigen Mann war und zum Schelmen der Stoff.
Tradução: É pena que a Natureza tenha feito de ti um único homem, pois haveria matéria para um homem digno e um patife..
»A propósito, acerca do caso de Norwood, lembra-se que havia na casa, como eu supunha, um cúmplice que não podia ser senão Lal Rao, o mordomo? Por isso, Jones teve, de facto, o mérito próprio da captura de um peixe com a sua enorme rede.
- A divisão parece bastante injusta - observei. - Foi você que fez todo o trabalho neste caso. Eu fico com uma mulher, Jones com o mérito. Que resta para si?
- Para mim - disse Sherlock Holmes - resta a cocaína. - E estendeu a longa e branca mão para o frasco.
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